29/09/24

afirmações-orações contra a cristalização do medo de não conseguir

 Há uma melancolia que atravessa o prazer, uma mágoa que polui o afeto, uma dúvida que desmancha a certeza. E, por sua vez: o prazer que fura a melancolia, o afeto que lava a mágoa, a certeza que cala a dúvida.

Tudo pode ser o que também não é, até certo ponto.

A fragilidade, a vulnerabilidade, até mesmo a fraqueza sentida assim podem ser elucidativas sem mandar tudo (sempre) abaixo. Não é preciso questionar tudo sempre que a dúvida ou o desamparo se impõem. Não é preciso ficar no chão quando se cai. Não faz mal ficar no chão durante um bocado. Encostar o corpo à mágoa e sentir o seu suporte.

"A dor tem um lado erótico, no sentido em que nos aproxima do fundo de nós mesmas" (Björk). Mas a dor não é mais profunda ou mais verdadeira do que o prazer.

Isto não tem de ser umacoisaououtra.

O que nos define não nos define sempre. Mas existe a possibilidade de nos deixarmos afetar; de fora para dentro. Não existe nada que não seja produto de uma relação. Que não seja relação.

Escolha em vez de controlo, não por oposição a. Mas enquanto dispositivo de reconfiguração. Menos "para quê", mais "como", "onde", "quando". Saltar para o acontecimento (Fernanda Eugenio, MO_AND). Não como evasão ou dissociação. Mais como desapego e repartição.

O desvio tem o seu valor. Todos os caminhos têm os seus fantasmas, as suas genealogias.

Há algo a descortinar. Não tanto como verdade mas como revelação circunstancial, que é o melhor presente que o presente nos pode dar.

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Como nos mostrou Hannah Arendt, “o ponto em que o pensamento fracassa é justamente aquele em que devemos persistir nele (...) imprimir-lhe uma nova direção” (apud. Didi-Huberman, 2020). Isto pode passar por desconstruir a própria ideia de fracasso (falha), ou por encarar o facto de que o pensamento falhará sempre ali onde tenta sair dos limites que o encerram. Esses são os moldes do movimento de pensar e, desse modo, ele falha justamente onde deveria falhar, que é como dizer que faz o que é suposto: não falha realmente. Mas o que acontece é que não serve realmente. Persistir será no ponto (e não no pensamento) a partir do qual (só) pensar já não serve para que possamos continuar.


Argonautas, Maggie Nelson


A aporia jaz no impasse que possibilita a sua continuidade, no sentido em que o que não se resolve permanece em aberto. É também nesse sentido, perante a resolução que falha, que o desvio se impõe, que a brecha deixa derramar e que continuamos. 


26/02/24

ser de esquerda


Muitas vezes, em conversas saudáveis e importantes com camaradas e amigues de esquerda que, neste período pré-eleitoral, me ajudam a manter algum alento (ainda que o cenário seja preocupante), costuma surgir um tópico quase sempre divisivo e que, no geral, constitui sem dúvida um fator de divisão no eleitorado de esquerda, normalmente alinhado nas questões fundamentais (sim, à esquerda do PS, nunca é demais dizê-lo). 

Embora seja uma daquelas pessoas que acredita mesmo que uma união da esquerda é crucial, talvez mais do que nunca desde que sou viva e tenho idade para votar, e sem qualquer intenção de insinuar o contrário (!!), senti que gostava de escrever este texto, com o intuito de contribuir (ainda que minusculamente) para aprofundar um pouco a discussão em torno desse tópico, que, tal como outros, tem sido tão mal representado nos nossos órgãos de comunicação social e neste absurdo e patético reality show apresentado e alimentado pelos nossos canais de televisão e “comentadores” facciosos (que não só demonstram uma enorme falta de rigor jornalístico como têm sido diretamente responsáveis pela normalização de ideias, discursos e figuras assumidamente antidemocráticas, para não dizer fascistas). 

O tópico de que falo prende-se com os diferentes posicionamentos dos partidos de esquerda a nível de política internacional e, concretamente neste caso, com a posição de um partido em particular – que, a meu ver, não só agora mas já há bastante tempo, tem dado azo a certas confusões e juízos muitas vezes baseados em caricaturas e equívocos. Isto não significa que toda a gente que discorda desta posição está equivocada, e a discórdia é justa e legítima numa sociedade que se queira plural e diversa! Mas acredito – sobretudo constato – que o que distancia algum eleitorado de esquerda deste partido (já toda a gente percebeu qual é, claro) e que inclusive afirma que é precisamente neste âmbito que se distancia, nem sempre tem como fundamento o que este partido realmente defende e propõe nesta área, mas sim uma ideia bastante enviesada ou pouco informada dessa posição. Com confiança, posso dizer que, para mim, é completamente o contrário. A distinção desta posição à esquerda é um dos motivos que me tem aproximado deste partido e agora me leva a votar nele. Aviso já que não sou militante e também não acho que um voto signifique validação total de tudo o que o partido em quem decidimos votar defende ou algum tipo de selo de lealdade inquebrável (já votei noutros partidos). Na verdade, haveria muito a criticar, como aliás há em relação a todos eles, e a toda a classe política, e a todo o modelo democrático-liberal mas enfim…

A questão, para mim, começa numa reflexão sobre aquilo que significa “ser de esquerda” ou defender uma posição de esquerda. Claro que há muitos tipos de esquerda e toda uma pluralidade de visões de sociedade dentro da(s) esquerda(s), mas há algo que, para mim pelo menos, constitui a principal razão para me identificar como uma pessoa de esquerda (comunista), que diz respeito ao entendimento de que o sistema capitalista e imperialista vigente é a fonte principal da desigualdade, da injustiça e da exploração. Nesse sentido, ser de esquerda é, para mim, ser anticapitalista e anti-imperialista (e antifascista), consciente de que os vários sistemas de opressão e violência se alimentam, se entrelaçam e se fortalecem a partir e em torno de uma estrutura económica, política e ideológica baseada no lucro às custas da subjugação do outro, da destruição do planeta e da manutenção de uma sociedade estratificada, em que os poucos têm muito e os muitos pouco têm… Quanto mais leio, vivo e conheço, mais esta consciência se reforça e se confirma. Isto não é nenhuma invenção, e é bastante antigo, muito mas muito mais antigo do que eu e a minha curta existência. Mas o capitalismo, em relação à história da humanidade, é recente. Isto não é para dizer que o que havia imediatamente antes era melhor (!) — o capitalismo desenvolve-se a partir de algo que já seguia e procurava cumprir esta lógica. Mas serve apenas para contrariar aquelas pessoas que dizem que o capitalismo “reflete a natureza humana” ou que é impossível superá-lo. E se é verdade que a ganância, a violência e a competição fazem parte do ser humano, também o poderíamos dizer da solidariedade, da amizade e da entreajuda. Aliás, num sistema capitalista, estas coisas não são apenas qualidades mas ferramentas de sobrevivência e sanidade física e mental. São aquilo que permite manter alguma esperança num mundo despedaçado, dividido e em chamas. 

Além disso, é preciso dizê-lo, existem pessoas e potências responsáveis pela manutenção deste sistema, umas muito mais que outras — sendo que, no capitalismo global neoliberal, a interdependência entre estados-nação e os seus mercados é praticamente total. É uma cadeia de desastre, na qual, obviamente, pesam aqueles que acumulam maior poder, para subjugar os outros, quase sempre contra os seus próprios interesses. E não é por acaso que aqueles que detêm maior poder e riqueza sejam, na sua maioria, potências que erigiram o seu império, as suas cidades e as suas “democracias” através da invasão, colonização, expropriação, escravidão e exploração dos países e das pessoas que hoje são as mais pobres e exploradas. Para isso ajudou muito o esforço imperialista para esmagar lutas e movimentos de emancipação e libertação, com centenas de golpes de estado bem documentados, assassinatos, sanções e bombardeamentos sem fim. Sim, tentar derrubar o capitalismo é uma missão ingrata, que normalmente, pelo menos até ao presente, trouxe consequências muito duras e aparentemente definitivas para quem procurou construir outra forma de existir.

É fácil apontar falhas a projetos de sociedade anticapitalistas sem mencionar este “pequeno pormenor”. É fácil criticar a visão “utópica” de um mundo anticapitalista sem considerar que a força para destruir essa utopia quase sempre vingou sobre quaisquer que pudessem ser as “falhas” de um outro sistema que nunca teve sequer a oportunidade de se concretizar. O que podemos constatar, porém, é que revoluções políticas e medidas de cariz comunista ou socialista contribuíram, e muito, em muitas instâncias, dentro de um sistema capitalista, para criar condições de vida mais justas, conceder direitos a quem não os tinha e aumentar a distribuição de riqueza. Essa é a história dos movimentos populares de esquerda. Nós temos a sorte de ter Abril para o provar.

(Talvez antes de julgar cegamente tentativas de criar outro tipo de sociedade e caricaturá-las de “extremistas”, fosse construtivo olhar para o extremismo que é 1% da população global acumular, neste momento, praticamente o dobro da riqueza de todo o resto do mundo…)

Voltando ao tópico que originou este texto, para mim é estranho afirmar um posicionamento de esquerda sem criticar as pessoas, as potências e os interesses responsáveis pela manutenção e propagação da miséria global e pela proteção das relações de poder que a mantêm, a nível geopolítico. Nações colonizadoras que continuam a colonizar e a defender com unhas e dentes um imperialismo podre, sanguinário e racista, de que depende a sua hegemonia. Enquanto cidadã europeia de esquerda, não posso conceber alinhar num discurso que não coloca em causa a raiz colonial e militarista de blocos como a NATO, a hipocrisia xenófoba e exclusivista do projeto europeu e a sua subserviência cabal (económica e ideológica) aos interesses extrativistas e facínoras dos EUA. São palavras fortes, bem sei, mas perante o momento histórico que estamos a viver, com um genocídio a desenrolar-se em direto nos nossos pequenos e grandes ecrãs, abertamente patrocinado pelas grandes potências ocidentais ao mesmo tempo que tentam silenciar e condenar quem se atrever a denunciar aquilo que se passa na Palestina, custa-me que sejam apelidados de “extremistas” ou até “isolacionistas” aqueles que, desde sempre, defenderam a paz e a cooperação internacional. Durante a guerra colonial, estes “extremistas” lá estavam a defender a libertação dos povos africanos, enquanto muito “boa gente” chorava a queda do império e pedia “calma” a quem lutava e dava a vida pela independência.

A manipulação dos media daquilo que são as verdadeiras posições do PCP sobre política internacional ainda hão-de dar um estudo sociológico e eu gostava de falar de algumas falácias que são difundidas sobre isto, sem qualquer contraditório, bem como afirmações verdadeiras que são automaticamente apelidadas de “extremistas” sem contextualização. Algumas delas são repetidas por pessoas de esquerda (liberal) que afirmam distanciar-se do PCP nestes assuntos:

(1) “O PCP quer sair do Euro” — Falso

A “saída do Euro” não consta do programa eleitoral do PCP, nem é uma medida proposta pelo partido. O que o PCP afirma (e é estranho discordar disto) é que não é possível ignorar as consequências que a moeda única tem para o país e o seu papel na sua estagnação económica. Não é nenhuma teoria da conspiração nem uma constatação “irrealista”, é algo que foi estudado, analisado e comentado, e que é evidente na forma como Portugal está refém de políticas económicas que não servem os seus próprios interesses. Nesse sentido, o PCP considera importante (e eu também, por tudo o que disse antes) enfrentar a submissão ao Euro (tal como ela existe) e recuperar instrumentos de soberania monetária.

Aconselho a lerem a secção do programa do PCP sobre “Portugal e a União Europeia”, em que se lêem coisas extraordinárias como: defender “a salvaguarda e exercício efectivo do direito do povo português de se pronunciar, inclusive por referendo, sobre decisões com impacto relevante na vida nacional tomadas ao nível da UE” ou “a defesa do princípio da igualdade entre Estados – um país, um voto –, com o direito de veto em todas as questões consideradas de interesse fundamental para o desenvolvimento, a soberania e independência nacionais, e a defesa da representação permanente de cada um dos Estados, em pé de igualdade e com direito de voto, na Comissão Europeia”.

Quase parece que o PCP quer uma União Europeia mais democrática… Mas devo estar a ler mal.

(2) “O PCP quer a saída de Portugal da NATO” — Verdadeiro

Para quem não sabe, a Constituição Portuguesa diz:

“Portugal preconiza a abolição do imperialismo, do colonialismo e de quaisquer outras formas de agressão, domínio e exploração nas relações entre os povos, bem como o desarmamento geral, simultâneo e controlado, a dissolução dos blocos político-militares e o estabelecimento de um sistema de segurança coletiva, com vista à criação de uma ordem internacional capaz de assegurar a paz e a justiça nas relações entre os povos.”

O extremismo do PCP, neste caso, é querer cumprir a Constituição.

(3) “O PCP não condenou a Rússia = o PCP defende a invasão russa” — Falso

Esta cassete já devia ter virado, de tanta tinta que fez correr desde há dois anos para cá. Seria de esperar que, perante aquilo que é hoje a situação na Ucrânia e depois das milhentas declarações do partido sobre esta guerra, já tivesse havido um reconhecimento coletivo de que a posição do PCP não significou, em momento algum, o apoio da invasão russa ou qualquer falta de condenação. Pelo contrário, foi um posicionamento lúcido, íntegro e consciente do contexto e das várias outras forças intervenientes para além das diretamente envolvidas, cujos interesses parecem, passados dois anos, muito óbvios. Por outro lado, as lágrimas de crocodilo derramadas pelo oportunismo da escalada militar que desde então tem afastado uma solução de paz para a Ucrânia já não lavam o sangue das vítimas. Ao mesmo tempo, é interessante verificar os double standards daqueles que vilificaram (e vilificam) o PCP numa suposta  “defesa do povo ucraniano” e o silêncio ensurdecedor que mantêm perante a chacina do povo palestino. É quase como se a cor de pele das vítimas determinasse o seu direito à vida.

(4) “O PCP apoia a China, a Coreia do Norte e a Venezuela (aka “ditaduras comunistas”)” — ???

Se encontrarem declarações de apoio do partido sobre isto, gostava de as ver.

Quanto muito, o PCP oferece alguma resistência em reproduzir o discurso dominante daqueles que têm todo o interesse em demonizar nações que não se alinham com a narrativa imperialista dos países liberais, que, ao mesmo tempo, defendem que “isto é que é bom”, enquanto enviam armas para Israel continuar a dizimar. É, no meu entender, um sinal de coerência e consistência, qualidades que, na política tuga, valem pouco infelizmente. Uma integridade que não se verga aos sensacionalismos das condenações vazias, cínicas e pretensiosas dos guardiões dos “nossos valores”.

Na secção do programa eleitoral intitulada “Por uma política externa em prol da paz, da amizade e da cooperação no mundo”, o PCP volta a afirmar coisas estranhíssimas como: fomentar “o desenvolvimento de relações económicas justas, mutuamente vantajosas, norteadas pelo benefício mútuo, respeitadoras dos interesses, especificidades e necessidades de cada país, orientadas para a complementaridade e não para a competição (entre produtores, produções e países), rejeitando e revertendo as linhas desreguladoras e liberalizadoras actualmente prevalecentes no comércio internacional” ou “a participação em projectos multilaterais de benefício mútuo, tirando partido de novas dinâmicas nas relações internacionais. O incremento das verbas destinadas à política de ajuda ao desenvolvimento e a defesa da anulação das dívidas dos países economicamente menos desenvolvidos” ou ainda “a defesa de uma política de migrações, nomeadamente no âmbito da União Europeia, respeitadora dos direitos, incluindo dos direitos sociais e laborais, que rejeita discriminações, a instrumentalização das migrações pelos grandes interesses económicos e a abordagem federalista e militarista, nomeadamente da denominada «Europa fortaleza»”… Estão a ver o extremismo??

Além disso, defende também “o desenvolvimento de iniciativas e de uma acção efectiva de solidariedade com os povos em luta em defesa da sua soberania e direitos, nomeadamente com vista ao fim do bloqueio dos EUA contra Cuba, ao cumprimento dos direitos nacionais do povo palestiniano, com a criação do Estado da Palestina, ou do direito de autodeterminação do povo sarauí, como determinam as resoluções da ONU”.

Para mim, não há qualquer dúvida de que isto são tudo coisas que eu quero e imagino possíveis.

E penso: se por acaso algum dia deixarmos de ter o PCP no nosso Parlamento, esse dia seria mesmo triste. Mas no ano em que se celebram os 50 anos de Abril, em que vemos a extrema-direita a crescer e as ideias da direita, no geral, a dominar cada vez mais espaço, sinto alento naquelas e naqueles que continuam a defender algo que só se tornará obsoleto no dia em que não for preciso reivindicá-lo, e cada dia reconheço e admiro mais essa perseverança, essa resistência e essa consistência. Até lá, não é utopia, mas sim bom senso, acreditar que há outra forma de fazer as coisas, de criar relações com os outros, de construir caminhos. Ou se é utopia, que seja. É a única que me parece sã.

Como diz Enzo Traverso: “We can always take comfort in the fact that revolutions are never “on time,” that they come when nobody expects them.”


Por fim, deixo algumas sugestões de leitura; livros que, num passado mais ou menos recente, contribuíram para me desafiar a pensar criticamente sobre tudo isto e a desejar fazer parte da luta coletiva pela justiça, a liberdade e o fim das estruturas que não nos servem:

O Calibã e a Bruxa, Silvia Federici
Black Skin, White Masks, Frantz Fanon
A Liberdade é uma luta constante, Angela Davis
Memórias da Plantação, Grada Kilomba
O governo das desigualdades, Maurizio Lazzarato
Precarious Life. The Powers of Mourning and Justice, Judith Butler


Dia 10 de março, ide votar… Com consciência!



*Uma última nota para dizer que também existe quem critique o PCP, não por ser “extremista”, mas por não ser mais radical, ainda mais anticapitalista. Alturas houve em que, aquilo que o PCP hoje defende, eram os pilares de qualquer sociedade democrática. E eu concordo com muitas das críticas feitas nesse sentido. Passa por criticar toda a estrutura… Ainda assim, continuo a achar que é o partido que, no panorama nacional, mais desafia e combate a normalização deste sistema. E lá está, votar num partido não significa que concordamos com tudo. Para além do voto (ou talvez até mais do que o voto), há outros tipos de militância, luta e ação que podemos e devemos continuar a fazer. de cuidado, de comunidade, de criatividade.

06/02/24

Miquelina e o estímulo da melodia

eu nunca tinha visto nada assim parecido, nem ninguém como a Miquelina naquela situação, nem é suposto, pensava. sentei-me com um desconforto tenso e pesado, mas levantei-me com alento. leve como a franja ondulada do seu vestido azul, que prendeu o meu olhar, de cada vez que ela se levantava para seguir o som.

as sombras do Miguel e da Miquelina projetadas no filme do Charlot fizeram-me lacrimejar e provocaram em mim uma sensação meio mágica, mas um pouco ácida, que me fez regredir e avançar em simultâneo, numa espécie de hiperconsciência sobre o início e o fim; a alegoria da caverna e a descoberta de que as coisas e as ideias não coincidem; a noção de finitude depois de uma vida plena. 

mas a rapidez da reação da Miquelina ao estímulo de cada melodia relembrou-me que a música tem o poder de ressuscitar — músculos, memórias, mortos e mães.

e claro, pensei no meu avô.




08/12/23

mundo "livre"




Aqui, no mundo livre, civilizado, democrático, presenciamos o genocídio nos nossos pequenos ecrãs. Presenciamos a inação da nossa classe política perante a chacina, a sua surdez aos apelos em massa. Recebemos os números, os nomes, os dados e as provas inequívocas da violência mais vil, do sofrimento mais atroz, da destruição mais vasta. Abrimos e fechamos as redes sociais para interromper ou continuar o nosso dia de coração apertado. No nosso “mundo livre”, os nossos chefes de Estado, os nossos meios de comunicação e os comentadores de guerra nas nossas televisões continuam incapazes de se valer das palavras que realmente descrevem o que se passa e a prestar declarações de sangue na boca. As nossas universidades censuram e policiam estudantes, e nas nossas fronteiras erguem-se muros, tão altos quanto a cor da pele dos que delas se aproximam. No nosso “mundo livre”, é suposto termos orgulho nos nossos valores, e naquilo que as nossas nações construíram pela subjugação, a exploração e a pilhagem de outros povos. No nosso “mundo livre”, deveríamos estar solidários com quem é parecido connosco, e sabemos o que isso significa. Aqui, civilizar significa destruir, a liberdade compra-se e a democracia exclui.

Dizer que o que se passa em Gaza (e em todo o território ocupado da Palestina) também é sobre nós não reflete apenas uma necessidade de reconhecer que os sistemas de opressão estão interligados, e que a nossa liberdade pouco livre é se continua dependente da negação da liberdade do Outro. Que não há “mundo livre” nenhum. Este genocídio é mais um monstro gerado e alimentado pelo “mundo livre”, financiado por aqueles que sempre lucraram e continuam a ganhar com a colonização, a morte e a violência. Aquilo a que estamos a assistir é o resultado de décadas e décadas de ocupação e humilhação, devastação e desumanização permanentes, com o aval  do “mundo livre”. Quem diria que um conjunto de nações colonizadoras e orgulhosas iria criar e apoiar este monstro? Esta máquina de soldados facínoras? No “mundo livre”, a vida de uns não tem o mesmo valor que tem a vida de outros. Nunca teve. Essa é a lição da missão civilizacional do “mundo livre”.

Fazemos parte deste “mundo livre”. Respiramos o seu ar, estudamos e trabalhamos nas suas instituições, gozamos dos seus privilégios, somos herdeiras das suas histórias. Neste ponto da história em particular, podemos ainda fazer escolhas, tomar posições e projetar a nossa voz, cada vez com maiores riscos, e por vezes com um sentimento de grande impotência, é certo, mas existe outra coisa que possamos fazer? E não está na hora, precisamente, de toda a gente fazer exatamente isso? Não, aqui no “mundo livre”, não vamos libertar a Palestina. A libertação da Palestina está em curso pelas mãos do próprio povo palestino, está em curso há muito tempo, muito antes do que se passa agora, muito muito antes. Gerações e gerações de resistência. Mas existe uma responsabilidade que se coloca aqui, no nosso lado do mundo “livre” – além daquela de apoiar incondicionalmente essa resistência – e que passa por boicotar, condenar, pressionar, rejeitar narrativas e destruir valores que contribuem como obstáculos a essa resistência, a essa libertação.

Imagens: excertos do filme THEY DON’T EXIST, de Mustafa Abu Ali (1974!)

03/12/23

onde o corpo não está

estando noutro lado, desta vez, o corpo não esteve. e no entanto agora eu estou. o que me fez lembrar que é possível estar onde o corpo não está e, por sinal, não estar ainda que o corpo esteja. este pensamento percorreu-me como uma vibração e provocou-me um arrepio, daqueles que acontecem quando nos apercebemos de identificar algo que já sentíamos há muito tempo, como se finalmente reagisse à substância pegajosa que pisei.

estar cá – para voltar ao tema das margens – não é apenas uma questão de perspetiva espacial mas também temporal. enquanto penso no que posso dizer sobre a correlação entre (a) presença e o verbo estar, realizo o estado de dissociação em que me encontro, em permanente falha ou deslize do presente, desencontrada do veículo que me permite não estar onde estou. vulgo fomo, tele-apatia, nadar fora de pé, como se alguma peça na lógica dos signos se tivesse quebrado sem reparo, desfazendo todas as ilusões de inteireza. 

é preciso estar, mas nas linhas traçadas por esta coreografia lacunar e fantasmagórica, falho redondamente nos passos, e continuo a falhar. não é evasão, é sublevação. sou daqui mas oponho-me, recuso-me, e não alinho mais neste teatro. há outro(s) espaço(s) onde estou (à frente, atrás); o corpo está presente sem presenciar, senta-se na plateia sem expectar, e reage a uma galeria de imagens, que alguém fixou, d’espaço-tempo que não habitou, para fazer ilações sobre (a) presença. 

as sombras denunciam a matéria, recortadas no interior do follow-spot, e os movimentos reconstroem-se ao som da voz dos relatos dos verdadeiros espeCtadores: os lenços esvoaçam, as saias abanam – é como se estivesse lá! as artes vivas têm esta particularidade de evidenciar a morte como nenhuma outra arte (morta?), com ou sem queda do pano. artes vivas, isto é, as que exigem cumprir-se pelo corpo vivo de alguém, que é como dizer o corpo-morrente de alguém, entalado entre o berro inaugural e o último suspiro, em que o que desconcerta é o rasto que deixa – deixa de ser – e eu nem vi-vi esta dança. 

pode parecer que me desvio simplesmente pelo prazer de ser esquiva, e nem vou tentar negar o fascínio angustiado que tenho por tudo o que é escorregadio ou fugaz, mas isto não são pensamentos vãos ou vazios. é, sim, uma tentativa de contestar qualquer identidade estática (uma espécie de ressaca derrideana com cheirinho a Phelan?). 

eu estou sem que o meu corpo tenha estado, onde o meu corpo não esteve, e tantas vezes o meu corpo estava sem eu estar: este é o dilema do momento: um fosso. mistério residente, delineado pela alienação e o tem-de-ser forçado de uma normalidade absurda. dentro deste rectângulo mas muito longe. a questão hoje é sobre transbordar do corpo, refutar que o corpo seja aquilo que me torna presente, este presente, estas escolhas. estar lá de alguma forma que não é coincidente com este conjunto de membros e sentidos – um pouco como sonhar. sonhar que o corpo pode estar em vez de si mesmo, ou no lugar de uma ideia..? sonhar que o corpo sonhado pode ser signo e, como tal, sinalizar presença sem estar? lá, onde o meu corpo não esteve, apenas desejou ter estado, como tantas vezes deseja estar onde eu (não) estou. pousando os olhos nas lindas fotografias, vejo arte viva transformada em arte imóvel, mas se os fechar, juro que mexe!

 



Nota: para dissociar o corpo da identidade vergada às fronteiras do estado-nação – as mais rígidas de todas as fronteiras – é preciso caminhar em direção ao público, estender os braços e tropeçar no estrado. é preciso avisar que diferança rima com dança.


17/11/23

carne e plástico, choque e fio



do lado de cá, como quem embate contra a força de uma evidência, assisti atónita à profundidade da cena, ao que uma dança pode fazer aos olhos: um quarteto de carne resgatado ao desejo pelo gesto criador que nada pode contra a sua inevitabilidade. haveria outra forma de criar senão pelo impulso do que tem de ser? o impacto da coreografia aguarda-se na condensação, numa circunscrição temporal que emociona por si: a da curta e cruel beleza que se dá e logo termina. como a de uma canção… nessa duração da(nça)-se tudo, dando o tempo exato à lágrima para se formar e deslizar. 

esta é uma viagem no tempo; outra alguém já dançou isto antes, simulando a vertigem do cimo de um trapézio imaginário, antes do mergulho para os seis braços, os três abraços, uma liberdade de outro tipo, de outro género, com outras sombras, movida por uma vontade cáustica de dançar o que não se via dançar — e sobrevive ainda, no corpo assombrado de outra bailarina.

conjunto de músculos executantes, no corpo dela cabe uma pessoa inteira, e toda a violência que é ser pessoa num corpo; com o corpo ser pessoa. toda a violência que é ser mulher num corpo, ser pessoa num corpo de mulher. de colo em colo, hirta ou maleável, frenética ou passiva, intensidade ao rubro bate fundo, choca contra, revela-se na contradição de querer e não querer ser, querer e não querer decidir / precisar / controlar / seduzir / permitir / negar / resistir / ceder / atrair / enfrentar / desistir / escolher/… 

é no corpo que a sinto, a cada gesto, a cada choque, identificação-diferenciação, conflito interno – eu sei sobre o que isto é, eu sei e é isso que bate, foi isso que bateu. mas no fim, quero mais (e mais e mais, Nina Hagen em repeat), é esse o desejo suspenso pelo fio do trapézio imaginário que antecede qualquer embate (ou desvio).


logo logo vem outro corpo, desenhar com fio real (dental) um outro caminho. fala-nos do lado de lá, vestida apenas com uma frágil armadura de plástico e fita cola, cuidadosamente comprimida contra a pele nua. uma história sobre ida e retorno, rios e mares que ligam e separam margens, pontes que exigem e permitem travessias. ilustrada pela composição em tempo real de uma maquete com os mesmos objetos que serviam de vestimenta – pensos higiénicos, lenços de papel, palitos, pasta de dentes – a história desenrola-se como um novelo e é familiar. enquanto descrevo, como ela descreve, uma peça sobre descrições sobre coisas, visita às memórias de alguém, surgem partes soltas de uma memória conjunta de todas aquelas que conhecem as divisões do mundo, das cidades, das pessoas. aquelas que sabem que o lado de cá não é igual ao de lá, que tudo muda mal se passa a linha, a fronteira, o rio. o que falta pensar a fundo é que (poder) ir e vir não é apenas uma prova de liberdade, curiosidade ou coragem... para onde vai quem é expulso de onde pertence, para onde volta?


Imagens:
(1) Lágrima, de Olga Roriz
(2) Visita Guiada, de Cláudia Dias

10/11/23

Free Palestine


Terça feira aterrei em Berlim. À saída da estação central, uma concentração pela Palestina. Poucas pessoas, com bandeiras e keffiyehs, em círculo em torno de um altar com velas, em silêncio enquanto escutavam Fairuz (Zahrat al Mada’en – Jerusalem in my heart). Uma cerimónia de luto, numa das cidades da Europa onde a repressão de protestos e manifestações de solidariedade tem sido mais severa e violenta, e num país cujo governo tem adotado uma das mais veementes posições de apoio a Israel, apesar de toda a mobilização popular que continua a ter lugar. Em torno deste agrupamento, um cerco de várias carrinhas da polícia, com certeza em número desproporcional tendo em conta o cenário. A presença da polícia na cidade é bastante notória. Ao mesmo tempo, as ruas por onde andei estavam estranhamente vazias. Numa fachada o tag “Free Palestine”. Já a bandeira da Ucrânia esvoaça no topo de vários edifícios institucionais. 

Nos dois dias que se seguiram, participei numa conferência sobre o futuro da Europa, em que seriam discutidos temas como cultura, sociedade, democracia, sustentabilidade. Um encontro entre pessoas, muitas delas jovens, com projetos ou por parte de instituições culturais de vários países da Europa, que “pensam” e desenvolvem iniciativas na e sobre a Europa, as artes e a cultura na Europa, o financiamento destes setores e desses projetos, aquilo que pode ser uma rede de cooperação sustentável e resiliente entre pessoas e entidades europeias… Numa sala em que a quase totalidade das pessoas, embora de diferentes origens e idades, eram brancas – uma imagem completamente dissonante daquilo que é “a Europa” – foi com um misto de nojo, raiva e vergonha que escutei grande parte dos discursos e intervenções (com algumas exceções). Embora não tenha sido totalmente surpreendente, foi certamente agonizante.

A atmosfera não podia ser mais politizada, no sentido em que o que parecia estar a acontecer ali era uma espécie de missão de salvamento do orgulho europeu, uma manifestação colonial da superioridade da Europa e sobre a importância de preservar aquilo que são os “nossos valores”. Que valores? Um bolo podre em torno do qual se fabricam ilusões de poder e hegemonia, embrulhado nas palavras do costume.

Atenção, estes senhores (maioritariamente homens) que falaram são os “bons da fita”, os chamados liberais humanistas, que enchem a boca e o peito de ar para nos falar de democracia, de liberdade, de direitos humanos, de inclusão, de integração. Para condenar a extrema direita, o Putin, a China, os tiranos desta vida e… os terroristas. Aqueles “outros”, que não são como “nós”, civilizados e livres. As pessoas aplaudiam. “Como unir uma Europa que está dividida?”; “é preciso reencontrar uma europeanness, a alma da Europa”; “temos de encarar a Europa como uma grande equipa de futebol a trabalhar para os mesmos objetivos”, foram algumas das frases que ouvi e que, perante tudo aquilo que estamos a ver e a viver, ganhavam uma dimensão de terror. A náusea era constante. Pois aquilo que eu não ouvi dizerem dizia mais sobre a “alma” da Europa do que as palavras vazias que preenchiam aqueles discursos pateticamente moralistas e hipócritas.

Como é que é possível falar sobre qualquer um destes assuntos sem abordar, antes de mais, quanto custou (e custa) esta democracia, esta liberdade e estes direitos dos quais tanto nos gabamos? Como podemos falar de sustentabilidade e democracia sem questionar: em nome dos valores europeus, quantos povos tivemos e temos de oprimir para provar a nossa suposta superioridade? Quanta violência e genocídio tivemos e temos de exercer e promover para acumular o nosso poder? Quem construiu os nossos monumentos e com que riqueza? Quanto tivemos de saquear para encher os nossos museus? Onde se acumulam as nossas lixeiras? Quão variável é a altura dos muros das nossas fronteiras e a força da nossa solidariedade consoante a origem e cor de quem as atravessa? Quanta exploração, expropriação, escravidão e exclusão foram e são necessárias para sustentar esta nossa maravilhosa “way of life” europeia? E mesmo dentro das nossas fronteiras, quantos direitos não estão a ser suprimidos?! Que democracia é esta e quem pode realmente participar nela ou não?, ser, ou não, representade por ela ou representá-la? Depois de um build up de discursos infetados de chavões imperialistas, uma das fundadoras de um projeto chamado “A Soul for Europe” subiu ao palco para dizer, entre outras coisas, que “Israel tinha o direito de se defender do terrorismo”, momento em que precisei de me levantar e sair (infelizmente seguindo apenas menos de meia dúzia de pessoas igualmente incomodadas).

Foi desolador presenciar a ausência de reação daquela plateia, que, apenas poucos momentos antes, aplaudia grandes frases sobre o direito à liberdade e sobre como, para combater a tirania, é preciso “mostrar os dentes”! “Nunca mais”, dizem. 

No fim do último discurso, fui finalmente capaz de gritar “Free Palestine!”, mas foi tarde – as palmas sobrepunham-se, quase ninguém ouviu, mais ninguém gritou. E de toda a vergonha que senti nestes dois dias, confesso que a maior de todas foi não ter gritado antes, mais alto, de ter sucumbido à cobardia no desconforto daquele espaço. Falar agora, para a comunidade que já está dentro da mesma bolha que eu, por trás de um ecrã, é fácil. Juntar-me à multidão que enche as ruas, e unir a minha voz à delas, é fácil. Ter coragem para, num contexto não familiar, mas ainda assim sem estar em perigo, resistir e renunciar (loud&clear) a este tipo de declarações genocidas também deveria ser fácil, quando comparadas com aquilo que tanta gente está disposta a arriscar neste momento, sem outra hipótese. 

Olhei para mim própria e pensei no preço do meu privilégio, naquilo que ele protege. Tenho noção de que a luta é e tem de ser travada coletivamente, e que as formas de luta e resistência válidas são muitas e várias, em diversas frentes. Mas é urgente ultrapassar este medo (privilegiado) de nos colocarmos (e expormos) perante outro(s) que não pensam da mesma forma que nós e estar realmente disponível para as situações e conversas mais desconfortáveis e arriscadas, inclusive para defender a violência de quem resiste. Pois aquilo que temos a ganhar é muito mais do que uma consciência tranquila, é muito maior do que nós. Como é que podemos gabar-nos de ser livres enquanto presenciamos este nível de destruição e morte? 

Por fim, quero manifestar, para terminar o desabafo branco neste pequeno quadrado, um voto de profunda admiração por todas as pessoas judias que, em todo o mundo, agora e sempre, têm sido essenciais no apoio à luta e resistência da Palestina, contra o projeto colonial sionista e ocupação israelita, ao mesmo tempo que continuam a ser vítimas de antisemitismo, inclusive pelos seus próprios governos quando não se encaixam na narrativa única que estes querem vender enquanto afirmam protegê-las.

Edward Said, 1986, Exile | from the BBC series ‘Exiles’

06/11/23

ocupar (um) espaço



o presente é um feixe de muitos raios, uma espada de muitos bicos, uma voz cheia de harmónicos, embora nem todos sejam audíveis ao ouvido que, nesse presente, filtra o som para se situar.

mas o presente é generoso, abraça tudo no movimento que ele é. ultimamente, tem sido a história o recurso (e refúgio) mais valioso para ler o presente. mas a história, mais do que em livros, e para além de ferramenta de leitura, é movimento também. e o presente, generoso como ele é, ilumina a história a cada agora, para que ela mexa.

onde fica o porvir na equação dos tempos? esse holofote fabuloso sobre a maquete da cidade, sempre aceso. se o presente é encruzilhada, o futuro é curva, o passado é tronco atravessado na estrada. e para que haja história, é preciso quem a conte.

esta história é sobre ocupar – que é como dizer: esta história é sobre o corpo e a sua relação com o espaço. (não era de tempo que estávamos a falar? a história do corpo é sempre uma história de trauma – o chamado passado que não passa. voltamos sempre, sempre, aos fantasmas, à luta do luto que é ser vivo, à exigência poliédrica do presente em curso, etc.).

ocupar é tomar o espaço. sabemos esta história porque ela é nossa. ocupando se domou e dominou, se explorou e expropriou. ocupando se continua a expropriar. mas assim como há ocupante e ocupado, há ocupar e ocupar. ocupando também se resistiu e vai resistindo, é esse o movimento da história dos movimentos. há ocupar o espaço do outro e há ocupar o espaço que ao outro é negado. contra a ocupação, ocupamos as ruas e os cânticos ecoam. reivindica-se o espaço que não acolhe, deitamos os nomes dos mártires no chão das insígnias coloniais. abrimos caminho, vedamos entradas. 

quando ocupar é uma ação necessária contra a negação de espaço, liberdade e agência, ocupemos.

do outro lado da cidade, faz-se história também. corpos (nus) ocupam o espaço de passagem transformado em palco, iluminando o que a dita civilização queria ocultar – a prova viva do que queria matar. o corpo-”outro” (mitificado), que desafia o modelo-norma, desenhado à custa da exclusão multiplicada e violentamente institucionalizada. num dos lugares mais institucionais da cidade, estes corpos ocupam o espaço e dançam nele, lambuzam-se com a generosidade do presente, fazendo da nudez-transgressora uma transgressão libertadora, das folhas douradas uma valiosa ampulheta.

há que constatar que a mesma palavra não tem o mesmo valor em cada boca, a mesma ação muda consoante o corpo que a provoca, a saliva muda de sabor a cada língua, e essa é a diferença que conta. o presente é a melhor imagem da interseccionalidade. há ocupar e ocupar. uma história sobre o corpo e a sua relação com o espaço, o prazer, o frio e o calor, a dor, a terra e os recursos e todas aquelas coisas que, em nome da missão colonizadora, se ergueram entre ele e esses mesmos recursos. um corpo de gente, que se transforma em povo inteiro, em sexo, em cor.


Imagens:
(1) Manifestação pró-Palestina em Belém
(2) Gaya de Medeiros em A boca do Atlas, na Gulbenkian

30/10/23

dançar que se pensa


há qualquer coisa que está gasta (mas não é o corpo). há qualquer coisa que cansa (mas não são as palavras, nem os movimentos, nem o arco-estímulo entre o dito e o movido). a ligação quebra e refaz-se, do olho ao pé. mas as possibilidades são finitas, contingentes e materiais. o corpo tomba, ainda que seja forçado. há gravidade mais forte do que a vontade? ela está sempre no limbo (vontade de quê, de quem?), mas a divisão foi inventada antes de se tornar muro. há qualquer coisa gasta (e é essa a coisa!). o improviso também cristaliza, petrifica, solidifica a (re)a(tiva)ção (atenção que há 6 palavras dentro desta), é a dança da morte. 

foi preciso passar pela solidificação de um léxico para a ansiada soberania do corpo, de acreditar que ele podia tudo, antes de chegar “aqui”. antes ele não podia nada (?). de vez em quando, o corpo faz um gesto que é clarão. mas o que faz de certo gesto clarão, pontada, sobressalto? fui eu? não era eu a dançar mas fui eu que vi o clarão, senti a pontada e o sobressalto. mas o que é “fazer um gesto”? as perguntas desdobram-se, o corpo expande, continua a dançar que pensa, e eu aqui. também me mexo, se me lembrar. o som arrepiante dos pés a deslizar no linóleo já não tem por onde escapar, nem a tosse do senhor ao meu lado.

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lembro-me de fazer o desenho de um corpo e de inventar uma “anatomia de camadas”: o dentro, o mesmo-dentro, o dentro de tudo… mas nas camadas “de fora”, começavam os problemas. eram precisas testemunhas, não há corpo que se sustente sem elas.

o corpo foi tão maltratado, ainda é. o corpo guarda tudo. o corpo não está gasto, mas a palavra corpo já cansa. não é a palavra corpo, não é ela, é o muro que ela encerra e não pode, não tem como destruir. nem o corpo poderia — vale a pena tentar? o corpo é tudo menos muro, digam o que disserem os defensores da alma, do espírito, e de todas as coisas que o corpo supostamente aprisiona (vão dizer isso aos fantasmas…). 

o corpo é altamente penetrável, cheio de botões e buracos, cavernoso e acústico. as coisas entram-lhe por ele adentro, despejam-se. mas o que mais fascina é o impacto que tem nos outros corpos. nessa troca, o corpo encontra-se, reconhece-se, é outro como qualquer corpo, condenação-revelação que talvez não tenha como contornar. no final da dança, quem dançou?, pensei eu.


Na imagem: Paulina Santos dança Talvez ela pudesse dançar primeiro e pensar depois (1991), de Vera Mantero, na Gulbenkian.


01/08/22

pontes e travessias



«Perhaps one mourns when one accepts that by the loss one undergoes one will be changed, possibly for ever. Perhaps mourning has to do with agreeing to undergo a transformation (perhaps one should say submitting to a transformation) the full result of which one cannot know in advance. There is losing, as we know, but there is also the transformative effect of loss.»

(…)

«It is not as if an “I” exists independently over here and then simply loses a “you” over there, especially if the attachment to “you” is part of what composes who “I” am. If I lose you, under these conditions, then not only do I mourn the loss but I become inscrutable to myself. (…) On one level, I think I have lost “you” only to discover that “I” have gone missing as well.»

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Judith Butler, Precarious Life. The Powers of Mourning and Justice, 2004