Muitas vezes, em conversas saudáveis e importantes com camaradas e amigues de esquerda que, neste período pré-eleitoral, me ajudam a manter algum alento (ainda que o cenário seja preocupante), costuma surgir um tópico quase sempre divisivo e que, no geral, constitui sem dúvida um fator de divisão no eleitorado de esquerda, normalmente alinhado nas questões fundamentais (sim, à esquerda do PS, nunca é demais dizê-lo).
Embora seja uma daquelas pessoas que acredita mesmo que uma união da esquerda é crucial, talvez mais do que nunca desde que sou viva e tenho idade para votar, e sem qualquer intenção de insinuar o contrário (!!), senti que gostava de escrever este texto, com o intuito de contribuir (ainda que minusculamente) para aprofundar um pouco a discussão em torno desse tópico, que, tal como outros, tem sido tão mal representado nos nossos órgãos de comunicação social e neste absurdo e patético reality show apresentado e alimentado pelos nossos canais de televisão e “comentadores” facciosos (que não só demonstram uma enorme falta de rigor jornalístico como têm sido diretamente responsáveis pela normalização de ideias, discursos e figuras assumidamente antidemocráticas, para não dizer fascistas).
O tópico de que falo prende-se com os diferentes posicionamentos dos partidos de esquerda a nível de política internacional e, concretamente neste caso, com a posição de um partido em particular – que, a meu ver, não só agora mas já há bastante tempo, tem dado azo a certas confusões e juízos muitas vezes baseados em caricaturas e equívocos. Isto não significa que toda a gente que discorda desta posição está equivocada, e a discórdia é justa e legítima numa sociedade que se queira plural e diversa! Mas acredito – sobretudo constato – que o que distancia algum eleitorado de esquerda deste partido (já toda a gente percebeu qual é, claro) e que inclusive afirma que é precisamente neste âmbito que se distancia, nem sempre tem como fundamento o que este partido realmente defende e propõe nesta área, mas sim uma ideia bastante enviesada ou pouco informada dessa posição. Com confiança, posso dizer que, para mim, é completamente o contrário. A distinção desta posição à esquerda é um dos motivos que me tem aproximado deste partido e agora me leva a votar nele. Aviso já que não sou militante e também não acho que um voto signifique validação total de tudo o que o partido em quem decidimos votar defende ou algum tipo de selo de lealdade inquebrável (já votei noutros partidos). Na verdade, haveria muito a criticar, como aliás há em relação a todos eles, e a toda a classe política, e a todo o modelo democrático-liberal mas enfim…
A questão, para mim, começa numa reflexão sobre aquilo que significa “ser de esquerda” ou defender uma posição de esquerda. Claro que há muitos tipos de esquerda e toda uma pluralidade de visões de sociedade dentro da(s) esquerda(s), mas há algo que, para mim pelo menos, constitui a principal razão para me identificar como uma pessoa de esquerda (comunista), que diz respeito ao entendimento de que o sistema capitalista e imperialista vigente é a fonte principal da desigualdade, da injustiça e da exploração. Nesse sentido, ser de esquerda é, para mim, ser anticapitalista e anti-imperialista (e antifascista), consciente de que os vários sistemas de opressão e violência se alimentam, se entrelaçam e se fortalecem a partir e em torno de uma estrutura económica, política e ideológica baseada no lucro às custas da subjugação do outro, da destruição do planeta e da manutenção de uma sociedade estratificada, em que os poucos têm muito e os muitos pouco têm… Quanto mais leio, vivo e conheço, mais esta consciência se reforça e se confirma. Isto não é nenhuma invenção, e é bastante antigo, muito mas muito mais antigo do que eu e a minha curta existência. Mas o capitalismo, em relação à história da humanidade, é recente. Isto não é para dizer que o que havia imediatamente antes era melhor (!) — o capitalismo desenvolve-se a partir de algo que já seguia e procurava cumprir esta lógica. Mas serve apenas para contrariar aquelas pessoas que dizem que o capitalismo “reflete a natureza humana” ou que é impossível superá-lo. E se é verdade que a ganância, a violência e a competição fazem parte do ser humano, também o poderíamos dizer da solidariedade, da amizade e da entreajuda. Aliás, num sistema capitalista, estas coisas não são apenas qualidades mas ferramentas de sobrevivência e sanidade física e mental. São aquilo que permite manter alguma esperança num mundo despedaçado, dividido e em chamas.
Além disso, é preciso dizê-lo, existem pessoas e potências responsáveis pela manutenção deste sistema, umas muito mais que outras — sendo que, no capitalismo global neoliberal, a interdependência entre estados-nação e os seus mercados é praticamente total. É uma cadeia de desastre, na qual, obviamente, pesam aqueles que acumulam maior poder, para subjugar os outros, quase sempre contra os seus próprios interesses. E não é por acaso que aqueles que detêm maior poder e riqueza sejam, na sua maioria, potências que erigiram o seu império, as suas cidades e as suas “democracias” através da invasão, colonização, expropriação, escravidão e exploração dos países e das pessoas que hoje são as mais pobres e exploradas. Para isso ajudou muito o esforço imperialista para esmagar lutas e movimentos de emancipação e libertação, com centenas de golpes de estado bem documentados, assassinatos, sanções e bombardeamentos sem fim. Sim, tentar derrubar o capitalismo é uma missão ingrata, que normalmente, pelo menos até ao presente, trouxe consequências muito duras e aparentemente definitivas para quem procurou construir outra forma de existir.
É fácil apontar falhas a projetos de sociedade anticapitalistas sem mencionar este “pequeno pormenor”. É fácil criticar a visão “utópica” de um mundo anticapitalista sem considerar que a força para destruir essa utopia quase sempre vingou sobre quaisquer que pudessem ser as “falhas” de um outro sistema que nunca teve sequer a oportunidade de se concretizar. O que podemos constatar, porém, é que revoluções políticas e medidas de cariz comunista ou socialista contribuíram, e muito, em muitas instâncias, dentro de um sistema capitalista, para criar condições de vida mais justas, conceder direitos a quem não os tinha e aumentar a distribuição de riqueza. Essa é a história dos movimentos populares de esquerda. Nós temos a sorte de ter Abril para o provar.
(Talvez antes de julgar cegamente tentativas de criar outro tipo de sociedade e caricaturá-las de “extremistas”, fosse construtivo olhar para o extremismo que é 1% da população global acumular, neste momento, praticamente o dobro da riqueza de todo o resto do mundo…)
Voltando ao tópico que originou este texto, para mim é estranho afirmar um posicionamento de esquerda sem criticar as pessoas, as potências e os interesses responsáveis pela manutenção e propagação da miséria global e pela proteção das relações de poder que a mantêm, a nível geopolítico. Nações colonizadoras que continuam a colonizar e a defender com unhas e dentes um imperialismo podre, sanguinário e racista, de que depende a sua hegemonia. Enquanto cidadã europeia de esquerda, não posso conceber alinhar num discurso que não coloca em causa a raiz colonial e militarista de blocos como a NATO, a hipocrisia xenófoba e exclusivista do projeto europeu e a sua subserviência cabal (económica e ideológica) aos interesses extrativistas e facínoras dos EUA. São palavras fortes, bem sei, mas perante o momento histórico que estamos a viver, com um genocídio a desenrolar-se em direto nos nossos pequenos e grandes ecrãs, abertamente patrocinado pelas grandes potências ocidentais ao mesmo tempo que tentam silenciar e condenar quem se atrever a denunciar aquilo que se passa na Palestina, custa-me que sejam apelidados de “extremistas” ou até “isolacionistas” aqueles que, desde sempre, defenderam a paz e a cooperação internacional. Durante a guerra colonial, estes “extremistas” lá estavam a defender a libertação dos povos africanos, enquanto muito “boa gente” chorava a queda do império e pedia “calma” a quem lutava e dava a vida pela independência.
A manipulação dos media daquilo que são as verdadeiras posições do PCP sobre política internacional ainda hão-de dar um estudo sociológico e eu gostava de falar de algumas falácias que são difundidas sobre isto, sem qualquer contraditório, bem como afirmações verdadeiras que são automaticamente apelidadas de “extremistas” sem contextualização. Algumas delas são repetidas por pessoas de esquerda (liberal) que afirmam distanciar-se do PCP nestes assuntos:
(1) “O PCP quer sair do Euro” — Falso
A “saída do Euro” não consta do programa eleitoral do PCP, nem é uma medida proposta pelo partido. O que o PCP afirma (e é estranho discordar disto) é que não é possível ignorar as consequências que a moeda única tem para o país e o seu papel na sua estagnação económica. Não é nenhuma teoria da conspiração nem uma constatação “irrealista”, é algo que foi estudado, analisado e comentado, e que é evidente na forma como Portugal está refém de políticas económicas que não servem os seus próprios interesses. Nesse sentido, o PCP considera importante (e eu também, por tudo o que disse antes) enfrentar a submissão ao Euro (tal como ela existe) e recuperar instrumentos de soberania monetária.
Aconselho a lerem a secção do programa do PCP sobre “Portugal e a União Europeia”, em que se lêem coisas extraordinárias como: defender “a salvaguarda e exercício efectivo do direito do povo português de se pronunciar, inclusive por referendo, sobre decisões com impacto relevante na vida nacional tomadas ao nível da UE” ou “a defesa do princípio da igualdade entre Estados – um país, um voto –, com o direito de veto em todas as questões consideradas de interesse fundamental para o desenvolvimento, a soberania e independência nacionais, e a defesa da representação permanente de cada um dos Estados, em pé de igualdade e com direito de voto, na Comissão Europeia”.
Quase parece que o PCP quer uma União Europeia mais democrática… Mas devo estar a ler mal.
(2) “O PCP quer a saída de Portugal da NATO” — Verdadeiro
Para quem não sabe, a Constituição Portuguesa diz:
“Portugal preconiza a abolição do imperialismo, do colonialismo e de quaisquer outras formas de agressão, domínio e exploração nas relações entre os povos, bem como o desarmamento geral, simultâneo e controlado, a dissolução dos blocos político-militares e o estabelecimento de um sistema de segurança coletiva, com vista à criação de uma ordem internacional capaz de assegurar a paz e a justiça nas relações entre os povos.”
O extremismo do PCP, neste caso, é querer cumprir a Constituição.
(3) “O PCP não condenou a Rússia = o PCP defende a invasão russa” — Falso
Esta cassete já devia ter virado, de tanta tinta que fez correr desde há dois anos para cá. Seria de esperar que, perante aquilo que é hoje a situação na Ucrânia e depois das milhentas declarações do partido sobre esta guerra, já tivesse havido um reconhecimento coletivo de que a posição do PCP não significou, em momento algum, o apoio da invasão russa ou qualquer falta de condenação. Pelo contrário, foi um posicionamento lúcido, íntegro e consciente do contexto e das várias outras forças intervenientes para além das diretamente envolvidas, cujos interesses parecem, passados dois anos, muito óbvios. Por outro lado, as lágrimas de crocodilo derramadas pelo oportunismo da escalada militar que desde então tem afastado uma solução de paz para a Ucrânia já não lavam o sangue das vítimas. Ao mesmo tempo, é interessante verificar os double standards daqueles que vilificaram (e vilificam) o PCP numa suposta “defesa do povo ucraniano” e o silêncio ensurdecedor que mantêm perante a chacina do povo palestino. É quase como se a cor de pele das vítimas determinasse o seu direito à vida.
(4) “O PCP apoia a China, a Coreia do Norte e a Venezuela (aka “ditaduras comunistas”)” — ???
Se encontrarem declarações de apoio do partido sobre isto, gostava de as ver.
Quanto muito, o PCP oferece alguma resistência em reproduzir o discurso dominante daqueles que têm todo o interesse em demonizar nações que não se alinham com a narrativa imperialista dos países liberais, que, ao mesmo tempo, defendem que “isto é que é bom”, enquanto enviam armas para Israel continuar a dizimar. É, no meu entender, um sinal de coerência e consistência, qualidades que, na política tuga, valem pouco infelizmente. Uma integridade que não se verga aos sensacionalismos das condenações vazias, cínicas e pretensiosas dos guardiões dos “nossos valores”.
Na secção do programa eleitoral intitulada “Por uma política externa em prol da paz, da amizade e da cooperação no mundo”, o PCP volta a afirmar coisas estranhíssimas como: fomentar “o desenvolvimento de relações económicas justas, mutuamente vantajosas, norteadas pelo benefício mútuo, respeitadoras dos interesses, especificidades e necessidades de cada país, orientadas para a complementaridade e não para a competição (entre produtores, produções e países), rejeitando e revertendo as linhas desreguladoras e liberalizadoras actualmente prevalecentes no comércio internacional” ou “a participação em projectos multilaterais de benefício mútuo, tirando partido de novas dinâmicas nas relações internacionais. O incremento das verbas destinadas à política de ajuda ao desenvolvimento e a defesa da anulação das dívidas dos países economicamente menos desenvolvidos” ou ainda “a defesa de uma política de migrações, nomeadamente no âmbito da União Europeia, respeitadora dos direitos, incluindo dos direitos sociais e laborais, que rejeita discriminações, a instrumentalização das migrações pelos grandes interesses económicos e a abordagem federalista e militarista, nomeadamente da denominada «Europa fortaleza»”… Estão a ver o extremismo??
Além disso, defende também “o desenvolvimento de iniciativas e de uma acção efectiva de solidariedade com os povos em luta em defesa da sua soberania e direitos, nomeadamente com vista ao fim do bloqueio dos EUA contra Cuba, ao cumprimento dos direitos nacionais do povo palestiniano, com a criação do Estado da Palestina, ou do direito de autodeterminação do povo sarauí, como determinam as resoluções da ONU”.
Para mim, não há qualquer dúvida de que isto são tudo coisas que eu quero e imagino possíveis.
E penso: se por acaso algum dia deixarmos de ter o PCP no nosso Parlamento, esse dia seria mesmo triste. Mas no ano em que se celebram os 50 anos de Abril, em que vemos a extrema-direita a crescer e as ideias da direita, no geral, a dominar cada vez mais espaço, sinto alento naquelas e naqueles que continuam a defender algo que só se tornará obsoleto no dia em que não for preciso reivindicá-lo, e cada dia reconheço e admiro mais essa perseverança, essa resistência e essa consistência. Até lá, não é utopia, mas sim bom senso, acreditar que há outra forma de fazer as coisas, de criar relações com os outros, de construir caminhos. Ou se é utopia, que seja. É a única que me parece sã.
Como diz Enzo Traverso: “We can always take comfort in the fact that revolutions are never “on time,” that they come when nobody expects them.”
Por fim, deixo algumas sugestões de leitura; livros que, num passado mais ou menos recente, contribuíram para me desafiar a pensar criticamente sobre tudo isto e a desejar fazer parte da luta coletiva pela justiça, a liberdade e o fim das estruturas que não nos servem:
O Calibã e a Bruxa, Silvia Federici
Black Skin, White Masks, Frantz Fanon
A Liberdade é uma luta constante, Angela Davis
Memórias da Plantação, Grada Kilomba
O governo das desigualdades, Maurizio Lazzarato
Precarious Life. The Powers of Mourning and Justice, Judith Butler
Dia 10 de março, ide votar… Com consciência!
*Uma última nota para dizer que também existe quem critique o PCP, não por ser “extremista”, mas por não ser mais radical, ainda mais anticapitalista. Alturas houve em que, aquilo que o PCP hoje defende, eram os pilares de qualquer sociedade democrática. E eu concordo com muitas das críticas feitas nesse sentido. Passa por criticar toda a estrutura… Ainda assim, continuo a achar que é o partido que, no panorama nacional, mais desafia e combate a normalização deste sistema. E lá está, votar num partido não significa que concordamos com tudo. Para além do voto (ou talvez até mais do que o voto), há outros tipos de militância, luta e ação que podemos e devemos continuar a fazer. de cuidado, de comunidade, de criatividade.