o que é o conhecimento? ou o que é conhecer? qual é a relação (ou as relações) entre o conhecimento e o ponto de vista a partir do qual é possível conhecer?
antes de mais, importa talvez identificar a estreita relação entre a noção de ponto de vista e a noção de lugar, já que a palavra ponto nos aponta para uma dimensão espacial, em várias das suas definições, inclusive como sinónimo de lugar: ponto de partida (ou de chegada), ponto cardeal, ponto de encontro. em geometria, um ponto é um lugar onde duas ou mais linhas se cruzam ou a representação de uma linha vista de cima (ou de baixo) quando perpendicular ao plano, ou o lugar onde a linha fura o plano. neste sentido, um ponto tem um carácter estático, algo que, quando atendemos à sua dimensão temporal, se mantém, já que um ponto é também uma circunstância, um momento no meio de um discurso, por exemplo. um discurso por pontos é um discurso dividido, no qual cada ponto pode corresponder a uma ideia ou a um assunto. um ponto simboliza ainda o fim - ponto final - a conclusão, um limite - até certo ponto - um objectivo cumprido - está no ponto! temos ainda o ponto na costura, nos bordados e noutras técnicas manuais, que pressupõe o cumprimento de certas regras ou movimentos na sua aplicação, consoante o ponto, e em que, no fim, o ideal é que este não se desfaça. e muitos mais pontos ainda.
já o ponto de vista será então um lugar a partir do qual se vê mas também um modo de ver ou de compreender. desta forma, pressupõe-se que um ponto de vista está vinculado a uma perspectiva e, ao mesmo tempo, a alguém que, ocupando esse lugar e a partir dele, é aquela/e que vê. poderíamos então dizer que podem existir tantos pontos de vista quanto existem sujeitos, até porque, como sabemos, mesmo quando dois ou mais sujeitos se encontram num mesmo lugar, nem sempre isso significa que tenham o mesmo ponto de vista. obviamente, não falamos de um lugar meramente físico nem meramente geográfico. neste caso, quando falamos de pontos de vista, um lugar é muito mais do que isso, englobando dimensões sociais, identitárias, afectivas, empíricas, entre outras, que o informam e o posicionam. voltando à geometria, um ponto de vista é um lugar de intersecção: de inúmeros fatores, características e circunstâncias que, no fundo, dão origem ao modo de ver e compreender o mundo de cada pessoa. esta assunção torna provável a proximidade entre pontos de vista que se formam a partir de experiências semelhantes, ainda que isto não seja obrigatório. até porque, ao admitir que um ponto de vista está sujeito, e até condicionado, ao que acontece fora de nós e a eventos que podem abalar e transformar o nosso ponto de vista, isto é, o modo de ver e compreender o mundo. então talvez seja preciso reformular, pois não só podem existir tantos pontos de vista quanto pessoas como uma só pessoa até pode abarcar vários pontos de vista. não só porque, ao longo da sua existência, esse ponto está susceptível de ser questionado e deslocado, mas também porque temos a capacidade de relacionar vários pontos de vista e, dessa forma, abarcar vários pontos de vista em simultâneo e em constante interacção. a isso podemos chamar de imaginação, sobretudo no sentido em que o filósofo G. Didi-Huberman a concebe.
"a imaginação é, antes de mais - antropologicamente - aquilo que nos torna capazes de lançar uma ponte entre as ordens de realidade mais afastadas, mais heterogéneas (...) a imaginação concede-nos um conhecimento transversal, graças ao seu poder intrínseco de montagem, que consiste em descobrir - precisamente no sentido em que recusa os vínculos suscitados pelas semelhanças óbvias - vínculos que a observação directa é incapaz de discernir." 1
daí ser desconcertante o apego ao ponto de vista como moldura estática de apreensão da realidade ou do mundo. quase como se a pessoa e o ponto de vista fossem um só ou como se entre ambos fosse estabelecida uma relação de coincidência. é que até mesmo admitindo todas as condições e aspectos exteriores que influenciam e colaboram na construção do nosso ponto de vista, conhecer não partirá precisamente a vontade e a capacidade de transcender esse lugar, em vez de o aceitar como determinante ao ponto de nos impedir de ver para além de nós mesmas? o que nos permite conhecer não será o exercício da imaginação que, em vez de nos estancar em pontos, nos permite criar pontes, relações entre eles? apegarmo-nos ao nosso ponto de vista não será precisamente o gesto de limitar, restringir e travar a possibilidade de conhecer? nem se trata apenas de acumular perspectivas (uma vez mais, essa ideia transmite uma certa ausência de movimento, como se fôssemos apenas receptáculos de informação), até porque o conhecimento não é apenas um acumular de informação, mas de activar o diálogo entre os vários modos de ver possíveis. e esses modos de ver não se esgotam, mesmo dentro de uma única pessoa.
ao mesmo tempo, considerar que o movimento dialéctico e em constante (re)montagem é essencial ao conhecimento não é impedir que algumas dessas pontes solidifiquem, nem que seja para permitir múltiplas travessias sem ruir, para revisitar os vários lugares que elas ligam ou mesmo para encontrar alguma estabilidade, ainda que temporária. se para conhecer é preciso activar o movimento, são igualmente necessários esses momentos de estabilidade que, embora nunca se traduzam numa paragem total, permitem um desacelerar importante para assimilar ligações. não existe propriamente um ponto de saturação do conhecimento e essas ligações são infinitas, sobretudo se o nosso ponto de vista não for encarado como um limite. isso também faz com que seja impossível um conhecimento total ou definitivo do mundo ou das coisas. a sua essência dialéctica permite a sua abertura e impede o seu fechamento.
outro problema que surge quando privilegiamos aquilo que consideramos o nosso ponto de vista como a única moldura que temos para ver e compreender o mundo é cair no erro de cair num relativismo. aceitar e cultivar a pluralidade e a heterogeneidade de perspectivas não desfaz a existência de condições materiais e factuais a partir das quais essas perspectivas se multiplicam, se desdobram e se intersectam. aceitar a subjectividade do nosso ponto de vista não equivale a considerar tudo como subjectivo ou relativo. isto porque o conhecimento, tal como está a ser entendido, não se desenvolve num vazio. a imaginação não se desenrola sem história, os pontos de vista não existem sem corpo. a materialidade é uma condição física do ser humano, do ser-num-corpo. e, sobretudo, uma pessoa não conhece sozinha nem a partir do zero. a própria essência do diálogo é o confronto com o outro. e se conhecer é criar pontes (diálogos), pressupõe-se a necessidade de uma base que possibilite esse confronto - um consenso que possibilite a comunicação - um plano material onde as pessoas interagem. afirmar que tudo é subjectivo é, de certa forma, negar a interacção frutífera com o outro e, por conseguinte, o conhecimento. numa realidade em que tudo é subjectivo, não existe possibilidade de relacionar mas apenas de relativizar e sempre a partir de si próprio.
uma vez mais, um lugar estanque. pois se tudo fosse subjectivo, nada era objectivo. e se nada fosse objectivo, nada podia ser conhecido. ao mesmo tempo, seria fazer depender tudo o que existe do ponto de vista, um mero lugar de espectador. quando nos apegamos a esse lugar de espectador, paramos. tudo acontece e existe consoante o nosso modo de ver e, pior ainda, só acontece quando estamos a ver. por outro lado, impediria que várias pessoas pudessem ver a mesma coisa. não só deixaria de existir uma realidade partilhada, como essas outras pessoas deixam de ser sujeitos. quando nos apegamos assim a esta ideia de relativismo total, ficamos sozinhas.
o entendimento e a aceitação do nosso lugar enquanto sujeitos e, como tal, a subjectividade das nossas perspectivas desmoronar-se-iam a partir do momento em que deixasse de existir um mundo e uma realidade materiais e sensíveis, a partir do qual essas perspectivas se constroem, permitindo erigir consensos (e conflitos) graças aos quais essas perspectivas se intersectam. mesmo a história, construída e contada por pessoas (sujeitos), com os seus pontos de vista, não pode confundir-se em absoluto com os acontecimentos e as realidades a partir dos quais essa história é contada, pois esse seria um gesto semelhante ao de confundir o ponto de vista com o sujeito. para o conhecimento ser possível, para a imaginação ser possível, precisamos de transcender esse apego ao nosso ponto de vista, precisamos de abrir espaço à realidade partilhada, que no fundo é uma base para a nossa estrutura, aquilo que nos liga ao outro. precisamos de abandonar o lugar de mero espectador e começar a andar.
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1 Didi-Huberman, Georges (2011) Atlas ou a Gaia Ciência Inquieta. trad. R. C. Botelho e R. P. Cabral, Lisboa, KKYM+EAUM, 2013.
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