08/04/21

poder e empatia (uma crítica aos "filósofos" new age...)


o que acontece quando não nos pomos no centro (da história, da conversa, da situação)? ou quando somos capazes de ouvir sem fazer ricochete constante com o eu sinto, com o eu penso, com o eu sei? o orgulho no 'alinhamento interior', apropriado e desvinculado de uma reflexão sistémica, bebe do mesmo individualismo que semeia a divisão e contamina qualquer chance de solidariedade. é fácil menosprezar o sofrimento que não nos atinge ou os problemas que não nos afectam. existe uma relação entre o poder que se tem (seja ele qual for) e a capacidade de sentir empatia, uma espécie de equação variável que ilustra tão bem a noção de privilégio. uma confiança despreocupada na ordem pré determinada das coisas é uma das manifestações desse privilégio e, ao mesmo tempo, uma desresponsabilização perigosa perante o nosso lugar de fala e o nosso papel na perpetuação de sistemas estruturados a partir da desigualdade e da opressão. reconhecer o nosso próprio privilégio (e o nosso próprio poder) passa por entender que estes só existem às custas dessas mesmas desigualdades e opressões. as opiniões que manifestamos e a forma como o fazemos, as pontes que somos capazes de fazer com experiências diferentes das nossas e as acções que pomos em prática a partir desse reconhecimento podem contribuir para desmantelar / desconstruir essas estruturas ou, pelo contrário, para as reforçar e perpetuar - nunca esquecendo que a aprendizagem não se esgota.

a crença numa espécie de alinhamento cósmico e acrítico em que tudo está certo e tudo é como tem de ser é alimentada por uma incapacidade de olhar para fora de si e para a necessidade de mudança que tem de partir do reconhecimento de que, na verdade, nada está "certo" num mundo onde até o acesso às necessidades mais básicas é um privilégio, e onde os direitos são conquistados através de lutas colectivas incessantes... vemos este tipo de crenças associado, por exemplo, à espiritualidade New Age ocidental, sobre a qual existem correlações com o narcisismo e a ideia de uma superioridade espiritual. pessoas cujas necessidades básicas e materiais se encontram normalmente satisfeitas e para quem é fácil engajar em teorias que subestimam a realidade material (como um não-problema ou como um problema apenas para quem ainda não o superou) usam esta espiritualidade como uma ferramenta de individualização e distanciamento (das "massas"), muitas vezes falando de si mesmas como seres iluminados - e das massas como "carneirada". é curioso constatar que grande parte de pseudo-gurus e influencers espirituais ligades à astrologia moderna, ao yoga, às terapias alternativas holísticas e de wellness (etc.) se empenham constantemente na defesa da ideia "a tua verdade é (que é) válida". esta ideia, embora não seja propriamente condenável em si, acaba por validar uma espécie de intuição auto-centrada como único meio de acesso à verdade: o sentido crítico, a colectividade ou a reflexão histórica são normalmente postos de lado e substituídos pela fé no próprio indivíduo, que embarca numa alegada viagem de auto-conhecimento e, assim, se "eleva" a um novo nível de consciência. a projecção deste individualismo narcísico manifesta-se na dificuldade em estabelecer diálogo com o outro, em lidar com críticas ou em tomar parte de uma discussão engajada sobre estruturas e opressões sistémicas. 

é curiosa a frequência com que estes círculos se empenham no apoio e difusão de teorias da conspiração, por um lado corroborando a ideia de detenção de uma verdade oculta para a maior parte das pessoas (que não têm a capacidade de a desocultar), e destacando-se assim na sua diferença, e, por outro, satisfazendo a necessidade de uma 'explicação' simples e clara (ordenada) para problemas e situações de grande complexidade e múltiplas nuances, que não podem ser apreendidos de forma linear. a crença em teorias da conspiração é algo que, em situações de maior ansiedade ou incerteza, pode ser um mecanismo de auto-defesa. estas pessoas sentem-se, de facto, privilegiadas - são capazes de ver o que outras não vêem, de perceber o que outras não percebem - mas sem reflectir na estrutura que lhes concede o privilégio de teorizar (ou melhor, de intuir) sobre problemas que, grande parte das vezes, não as afecta directamente. 

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no momento de crise que, a vários níveis - se não todos -, atravessamos, e na era do individualismo liberal capitalista, importa reinventar e re-imaginar o nosso lugar no colectivo, novas formas de associação e militância. não é preciso ser conspiracionista para saber que o poder está nas mãos de poucos, que os interesses económicos controlam os fluxos das coisas e até das pessoas, que a cultura da supremacia branca, patriarcal e classista herdada da colonização são os 'cordelinhos' que definem o acesso que temos ou não à educação, à saúde, à habitação digna; os direitos que temos ou não sobre o nosso corpo, a nossa liberdade de expressão, a nossa representatividade, o direito que temos ou não ao respeito, ao amor, no fundo à vida. e mais!, que as políticas que temos mais facilmente reforçam essa desigualdade em vez de a combater. e quantas vezes as teorias da conspiração não se baseiam em conspirações reais! mas há algo nesta forma de deturpar a realidade (e de a simplificar) que não tem em conta o peso da história e das histórias, das memórias, da complexidade das lutas e relações traçadas, do movimento non-stop das coisas, em que a astrologia se transforma em mais um produto self-service de self-knowledge, para pessoas incapazes de ver para além de si mesma e da 'validade' da sua verdade. não deixa de ser curioso que grande parte das grandes teorias da conspiração sejam narrativas criadas e difundidas por homens brancos, podíamos até pensar que é uma espécie de mecanismo de desresponsabilização do seu próprio lugar enquanto opressor no topo da hierarquia, uma espécie de resposta sempre que o seu poder se vê ameaçado. no fundo o que subjaz ao mindset individualista é uma profunda incapacidade de abdicar do poder (ou da ilusão de poder, num mundo muito mais interdependente do que muitos acreditam ser). e, pior, uma enorme dificuldade em desenvolver um pensamento sobre o colectivo ou em imaginar um mundo diferente. se o poder e a empatia são assim tão incompatíveis, será que existe algo que impulsione o interesse na mudança por parte de quem beneficia do mesmo sistema que precisa de mudança? e como é que isso acontece se nem sequer há capacidade de reconhecer e reflectir sobre a forma como se beneficia desse sistema? se, em vez disso, olhamos para a realidade como uma dimensão inapreensível, não vale sequer a pena tentar compreendê-la porque nunca vamos saber - quando na verdade podemos. certamente não podemos saber tudo, mas temos sim a capacidade (e a responsabilidade) de acreditar que não está tudo certo e muito menos que é inútil lutar contra o que está errado. a história prova-nos isso, por muitos livros que não o contem, nem que seja através dos movimentos colectivos e revolucionários que continuam, por todo o mundo, a imaginar e a gerar mudança.

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em baixo: imagens retiradas do primeiro episódio da série documental da BBC 'Can't get you out of my head' (2021), de Adam Curtis, sobre poder, individualismo, os fantasmas do imperialismo, as teorias da conspiração e os "mistérios da mente humana".............