16/06/21

desconstruir os mitos, quebrar os silêncios: a vingança de Echo

É curioso constatar que, a par de uma história de opressão sistémica, que confina a voz feminina ao silêncio e castiga as mulheres que ousam quebrá-lo, encontramos também uma série de mitos em torno desse prazer causado pela voz feminina, sedutora, carnal – como no caso das Sereias, por exemplo, ou mesmo das Musas. Em ambos os casos, de forma explícita ou implícita, entende-se a voz feminina como algo perigoso ou irresistível, que precisa de ser controlado ou mesmo evitado.

Numa das suas instalações-performance intitulada Illusions Vol. I – Narciso e Echo (2017), a artista Grada Kilomba revisita o mito de Ovídeo para explorar a temática das políticas de invisibilidade e silenciamento que constituem o centro da sua obra, recriando Narciso como a metáfora de uma sociedade que ainda não resolveu o seu passado colonial e que continua a olhar para si própria como único objecto de amor. Porém, o foco é colocado na figura de Echo, ninfa amaldiçoada por Hera devido à sua eloquência, condenada a nunca mais falar a não ser para repetir as palavras que ouve, para sempre. Apaixonando-se perdidamente por Narciso, é por ele rejeitada, acabando por se transformar em rocha e numa voz sem corpo, o próprio eco das montanhas. Grada Kilomba introduz assim um questionamento: como quebrar o ciclo repetitivo e a reprodução constante dos moldes coloniais e patriarcais que relegam a voz feminina – e, neste caso, fazendo também um paralelo entre Echo e a figura do sujeito colonizado – ao trágico destino da impossibilidade de falar por si própria?



Com este trabalho, a artista apresenta-nos uma possível interrupção desse mesmo ciclo e uma possível resolução das aporias que o constituem. Interpelando Gayatri Spivak, Kilomba questiona a prescrição de silêncio e marginalidade imposta à subalterna, abrindo um espaço onde os mitos são desconstruídos e questionados e onde a sua voz é efectivamente ouvida. Para além de uma componente corporal, coreografada, protagonizada por corpos negros e não brancos, que encenam gestualmente a acção, esta é narrada pela voz da própria artista (por vezes presente ou então através de uma gravação). Esta voz, simultaneamente suave e profunda, inconfundível, não só recupera a linguagem que lhe foi secularmente negada, como constitui o elemento fulcral da peça, o fio condutor, não só da narrativa como da experiência do espectador / ouvinte – o logos recupera a voz! É certo que a voz metafórica também é implicada, visto que, enquanto mulher negra, a artista inverte o lugar que lhe é reservado: a voz marginal e periférica torna-se aqui central e a linguagem é por ela reapropriada. Assumidamente inspiradas na tradição oral africana do griot, as performances de Grada Kilomba superam a dinâmica dualista entre universal e particular e os lugares fixos do centro e da periferia, pressionando o ar com a sua voz singular, fazendo desta muito mais do que um veículo de discurso – uma voz que é portadora de si mesma, enquanto manifestação sonora de auto-afirmação.

Numa das suas palestras, Adriana Cavarero, que também aborda o mito de Echo no seu livro dedicado à voz (For More Than One Voice, 2005), oferece-nos uma outra possibilidade de interpretação e desconstrução do mito, revelando a potência da ninfa precisamente através do exercício vocal da repetição que esta põe em prática. Desta perspectiva, a própria repetição já não simboliza um lugar subalterno no ciclo de opressão mas antes revela a reciprocidade da comunicação acústica inerente à voz, que desestabiliza o cânone através da sua “des- semantização”. Diz:

“A vingança de Echo é subtil (...) ela des-semantiza a voz através da repetição (...) desvinculando a palavra do seu significado e transformando-a em puro som (...) a ninfa Echo representa esta voz que interrompe e fragmenta a palavra e que, através da repetição da palavra fragmentada, cancela a ordem semântica hegemónica (...) o que realmente se comunica é a própria voz, na sua unidade e variabilidade.”

08/06/21

a voz melancólica: dizer o indizível


Crack baby you don't know what you want
But you know that you had it once
And you know that you want it back
Crack baby you don't know what you want
But you know that you're needing it
And you know that you need it bad 

Crack Baby (Mitski)


De acordo com Freud, o melancólico é aquele que, perante a perda, não é capaz de identificar o que nele próprio se perdeu, o que sugere que “a melancolia está de alguma forma relacionada com a perda de um objecto que é retirado da consciência”. Saber que perdemos sem saber exactamente o que nos falta é, como tal, algo que caracterizaria o sentimento melancólico, por oposição ao que acontece no luto, em que “nada acerca da perda é inconsciente”. Ainda segundo Freud, a chave para entender a imagem clínica da melancolia estaria no ponto de viragem em que o objecto perdido é projectado no próprio ego do melancólico, causando, simultaneamente, uma identificação narcísica e um posicionamento masoquista do melancólico contra si mesmo. Desta forma, a melancolia seria quase como uma espécie de desvio patológico do processo de luto, de negação da perda através da internalização do objecto perdido.

De acordo com a análise de Judith Butler, porém, Freud viria a rever esta sua concepção da melancolia, aceitando-a, pelo contrário, como o sentimento de perda indescritível que, por sua vez, possibilita o processo de luto. De facto, em The Ego and the Id, seis anos após a publicação do ensaio anteriormente citado, Freud considera mesmo que não existe ego sem melancolia, isto é, que a perda é constitutiva da própria formação do sujeito. Ou seja, o ponto de viragem do objecto da perda para o Eu seria o movimento que tornaria possível a sua distinção, a divisão fracturante entre o Eu e o objecto, entre o mundo interno e o mundo externo que esta separação parece sugerir. Neste sentido, a perda associada à melancolia é descrita por Butler como “uma perda que antecede a fala”, em que a melancolia estabelece “a condição limitante da sua possibilidade: um recuo ou retracção da fala que torna a fala possível”.

A ideia de uma fractura ou fragmentação interna associada à melancolia é algo com que nos deparamos em várias instâncias e com vários autores e que encontra uma certa equivalência na concepção moderna da representação. Para Julia Kristeva, cuja preocupação com a perda da linguagem associada à depressão toma um lugar central na sua obra, o sentimento melancólico encontra a sua origem, não no momento que antecede a fala, mas precisamente no momento do acesso à linguagem, e em que se dá o corte com a figura materna. A melancolia é então, para Kristeva, a manifestação do irreparável sentimento de perda da mãe e da incansável procura da sua recuperação que o acompanha, directamente associada ao processo de formação do sujeito, por sua vez identificado com a entrada no mundo simbólico, isto é, da representação e da linguagem, em que o signo ocupa o lugar do objecto ausente.

A ligação da figura materna ao momento que antecede este processo é explorada por Kristeva através daquilo que a autora define como chora semiótica: a esfera pré-verbal e inconsciente, ainda não habitada pela lei do signo e dominada pela acção rítmica e vocálica. Esta chora tem assim uma raiz profundamente corporal e relaciona-se com a totalidade indistinguível entre a mãe e a criança. Desta forma, precede o sistema simbólico da linguagem e a esfera semântica, associada à ordem paterna de separação entre o Eu e o Outro, entre significante e significado. Esta distinção relaciona-se, por sua vez, com uma longa tradição que, desde o período clássico, identifica o masculino com a razão e o feminino com o corpo, como nos mostra Adriana Cavarero em For More than One Voice.

Para chegar a essa reflexão, a autora percorre, ao longo de vários capítulos, a herança do pensamento grego (e sobretudo platónico), que considera responsável pela desvocalização do logos, fenómeno que se processa, por um lado, através da valorização da componente semântica do discurso sobre as componentes acústica e fonética e, por outro, da desvalorização da voz (phone) quando esta não está submetida à função discursiva. Desvinculado de uma voz cuja função se reduz à vocalização de conceitos, o logos grego remete, acima de tudo, para o plano universal, da linguagem enquanto sistema, negligenciando o mundo de vozes singulares que comunicam entre si, e subordinando essa mesma comunicação à ordem semântica.

.

A perda da voz como consequência ou sinal da melancolia é apontada, não apenas por Julia Kristeva mas também por Judith Butler (entre outras/os) e está, por um lado, associada à perda da própria linguagem, como vimos, e, por outro, à internalização do objecto (ou ideal) perdido, que produz o “vestígio da alteridade no Eu”. Isto é, segundo Butler, esse ponto de viragem, que é constitutivo da própria formação do Eu – visto que, “desde o começo, esse Eu é outro que não si mesmo” e “o que a melancolia mostra é que somente ao absorver o outro como si mesmo é que o Eu se torna algo” – produz uma “voz voltada para si mesma”. E ainda que “é possível perder um outro ou um ideal tornando-o indizível (...), impossível de ser declarado”, em que a (sua) interpelação funciona pelo fracasso. Butler procura, acima de tudo, abordar a melancolia dentro de um quadro social, em que a voz (de) que nos fala faz parte de uma determinada estrutura de poder. Mas voltemos a Cavarero para pensar acerca da comunicabilidade e relacionalidade da voz, procurando reflectir mais a fundo sobre a interpelação fracassada da voz melancólica.

Na sua obra já citada, Cavarero procura explorar a expressão vocal não apenas enquanto veículo da fala mas, acima de tudo, enquanto força comunicativa de si mesma. Voz é comunicação, e aquilo que comunica é “a singularidade contida e exprimida através da voz”. Enquanto matéria comunicativa com origem no corpo, a voz comunica sem dizer, e mesmo considerando a comunicação realizada a nível da linguagem e do discurso lógico, a própria língua em que falamos é muito mais do que uma estrutura sintática, gramatical e lexical, visto que envolve igualmente uma ampla gama vocal, de diversos sons e intonações, ritmo e musicalidade. Procurando colocar em causa a tradição filosófica de desvocalização do logos, como vimos anteriormente, Cavarero está interessada em (re)valorizar a sua componente vocálica como algo que não é universalizável, que diz respeito a um corpo ou sujeito singular. Ao mesmo tempo, é salientada a reciprocidade presente na invocação, visto que a voz não diz apenas respeito à emissão de voz mas também à sua recepção pelo outro, que escuta, e que “aquilo que, na fala, convoca uma relação entre falantes, é, acima de tudo, a voz”.

Paradoxalmente, então, a interpelação fracassaria na disposição melancólica talvez porque, segundo Butler, a voz do sujeito melancólico se vira para dentro, porque o outro que é invocado passa a ser parte constitutiva da fragmentação interna do Eu. Como tal, não existe vocalização: o melancólico está sozinho com os seus pensamentos, com a voz da sua consciência. A figura mais conhecida do melancólico, aliás, é uma figura silenciosa e isolada, reflexiva, tal como se nos apresenta em inúmeras representações ao longo da história das imagens (ver gravura de Dürer). Possivelmente, esta é também uma moldura de compreensão para a sugestão de Kristeva, de que a linguagem poética serviria de intermediação entre o discurso comum e a asymbolia (silêncio, sintomático da depressão profunda). Afirma:

“(...)em certos casos, o discurso do melancólico é tão pobre que nos questionamos em que tipo de bases poderíamos fundar a nossa análise. O sujeito depressivo sente que não vale a pena falar, visto que a conexão entre ele e o outro foi virtualmente cortada (...) é aqui que o trabalho da arte tem lugar (...) na base da arte existe uma depressão que se manifesta na desvalorização do Eu e/ou nos signos comuns da linguagem quotidiana. Isto pode ser enfrentado por um movimento de ressurreição (...) o poeta não usa expressões quotidianas, inventa metáforas (...) as artes plásticas e visuais funcionam como uma espécie de violenta reforma dos signos; uma tentativa de reabrir a caverna do sofrimento.”

Esta deslocação da linguagem, este jogo de fazer aparecer novas possibilidades e sentidos, de dar presença ao que está ausente não podia deixar de implicar a voz. Pois até mesmo quando se manifesta sem som – quando falamos, por exemplo, de uma voz declarada através de um texto – a voz invoca sempre uma presença, intimamente ligada a (alg)um corpo. “Uma voz significa isto: existe uma pessoa viva, garganta, tórax, sentimentos, que pressiona no ar essa voz diferente de todas as outras” (Calvino).

Desta forma, o fracasso contido na incapacidade melancólica de invocar o outro talvez encontre o seu contra-ponto na transformação da linguagem que essa incapacidade, paradoxalmente, permite, algo que nos obriga a ter em conta a origem pré-significante e corporal da voz, o prazer de “existir enquanto voz” (Cavarero), que pressupõe sempre algum tipo de relação comunicativa. Relembremos, por outro lado, Antígona, um forte exemplo que contradiz a figura silenciosa do eremita melancólico. A sua melancolia manifesta-se justamente no carácter público da sua reivindicação e na vocalização proclamada da sua dor. Mais uma vez, é Judith Butler quem vai questionar o que permanece indizível, não no sentido de procurar um discurso que preencha o vazio, mas como algo que nos permite indagar sobre o elo entre melancolia e a condenação social dessa proclamação. A autora pergunta então se, ao encarar o indizível em Antígona, “nos confrontamos com uma melancolia socialmente instituída, na qual a vida ininteligível emerge na linguagem como um corpo enterrado vivo”. Esta é, porventura, uma reflexão sobre a melancolia que pode convergir com uma discussão sobre género. São inúmeros os textos que tratam da voz nesse contexto, reflectindo e alertando consistentemente acerca dos silêncios historicamente impostos à voz feminina.


Antigone. Marie Spartali Stillman (1844 - 1927)


Em “The Gender of Sound”, Anne Carson explora a forma como, desde o período clássico, a voz feminina é associada a características moralmente negativas, identificando uma preocupação, desde tempos imemoriais, com manter a boca da mulher fechada. “O silêncio é a glória da mulher” (Aristóteles); “o silêncio dá o lugar certo à mulher” (Sófocles); “o que faz a mulher em primeiro lugar: silêncio. Em segundo: silêncio. Em terceiro: silêncio. Em quarto: silêncio” (Wilson), eis apenas algumas das citações que dão conta da necessidade de controlo e silenciamento da voz feminina, uma de muitas facetas da estrutura de poder patriarcal que, até aos nossos dias, vigora. Carson identifica, associada a este controlo, a ideia de que as mulheres têm a tendência para deitar para fora o que deveria permanecer dentro.

Curiosamente, nas mais variadas épocas e contextos, é às mulheres que, habitualmente, cabe conduzir o trabalho cerimonial do luto, em que a voz tem um papel preponderante, desde o lamento grego ao choro das carpideiras. Muitas vezes, estes rituais funerários excluíam a presença de homens, embora existam registos das suas tentativas de regulamentar estes eventos devido à barbárie e histeria que lhes eram associadas. Desta forma, verificamos que, a par de uma imposição de silêncio (literal e simbólico), é justamente à voz feminina que se atribui a vocalização da dor e do sofrimento, uma voz que é desvinculada de logos e, por isso, desvalorizada e marginalizada, considerada sempre enquanto voz outra. Assim, podemos talvez entender a razão pela qual será pertinente pensar especificamente na relação das mulheres – e, na verdade, de qualquer corpo considerado marginal / outro – com a voz como uma relação melancólica, na medida em que pressupõe sempre a perda de algo que é assimilado como seu, o vestígio fracturante da alteridade como parte constituinte do Eu.

Dizer o indizível é, por isso, algo que ressoa com uma força particular quando falamos da melancolia numa perspectiva de género, não só porque é algo que reflecte a proibição secular que constantemente nega a possibilidade de dizermos e falarmos (deitarmos para fora o que temos dentro) mas porque vai também de encontro aos papéis atribuídos, desde sempre, à voz feminina e à sua linguagem, para além do silêncio: chorar, gemer, gritar, cantar, (to mourn); manifestações sonoras de algo intraduzível ou, de outra forma, incomunicável. Por fim, espelha ainda a necessidade de procurar outro modo de dizer, inevitavelmente ancorado na experiência do corpo e da sua inconstância, e a partir do qual produzimos (e recebemos) voz.


Referências

Butler, Judith. “Psychic Inceptions. Melancholy, Ambivalence, Rage”. The Psychic Life of Power. Theories in Subjection. California: Stanford University Press, 1997, pp. 167-198.

Butler, Judith. Antigone’s Claim. New York: Columbia University Press, 2000.

Carson, Anne. “The Gender of Sound”. Glass, Irony and Gold. New York: New Direction Books, 1995, pp. 119-136.

Cavarero, Adriana. For More than One Voice. Towards a Philosophy of Vocal Expression. California: Stanford University Press, 2005.

Finer, Ella Jean. “Her Material Voice. The Vocal Female Body in Performance Time and Space”. PhD Thesis, University of Roehampton, 2012.

Farinati, Lucia & Firth, Claudia. The Force of Listening. Berlin: Errant Bodies Press, 2017.

Freud, Sigmund. “Mourning and Melancholia”, 1917. 

Freud, Sigmund. “The Ego and the Id”, 1923. 

Kristeva, Julia. Black Sun. Depression and Melancholia. New York: Columbia University Press, 1989.

Kristeva, Julia. Revolution in Poetic Language. New York: Columbia University Press, 1984.