23/01/22

monopolizar o medo contra o medo (pandemia, "liberdade" individual e a intolerância perante a incerteza)

Usar o medo como ferramenta de combate ao medo é uma das possíveis tácticas. Substituir o medo da doença pelo medo da cura, o medo do contágio pelo medo do controlo. E de facto, é assustador o que nos está a acontecer, por inúmeras razões. Medo é, aliás, uma das reacções mais normais ao que se passa. 

Medo, paranoia, ansiedade, depressão, têm vindo a crescer - terreno, por sua vez, extremamente fértil ao conspiracionismo e ao desenvolvimento de fobias, como vários estudos já verificaram. O facto de vivermos numa sociedade organizada sob um sistema capitalista neoliberal, cuja força motora são os interesses económicos, que coloca o lucro à frente da vida, não ajuda à gestão da saúde mental. As pessoas sentem-se enganadas e "desempoderadas", e sabem, por exemplo, que as grandes farmacêuticas não quereriam propriamente "salvar vidas" se isso não significasse a possibilidade de competir no mercado e fazer milhões. Não há conspiração, a conspiração é o capitalismo - com toda a sua complexidade.

Algumas pessoas parecem querer usar isto como um argumento anti-vacina, na maior parte das vezes, de forma superficial e sem que se identifiquem as motivações estruturais inerentes ao sistema capitalista. Também há gente a lucrar com isto, a desinformação também é um negócio. Os próprios meios de comunicação contribuem para e ganham com a "battle of the brands" das vacinas a troco de clickbaits, e esforçam-se por arranjar headlines que incitem precisamente o tipo de pessoas que já estão preocupadas - mesmo que seja um artigo exclusivo e o headline seja tudo o que vão ler. O que interessa é pôr as pessoas umas contra as outras, isso é que enche as caixas de comentários.

Pessoas anti-vacinas sempre houve, até aqui nada de novo. Desconfiar, em certa medida, da ciência, na verdade, não é nada de estranho, tendo em conta que, ao longo da história e até aos dias de hoje, a ciência "erra" e "errou" muitas vezes, para além de ser instrumentalizada para fundamentar agendas políticas e coisas bem horrendas. Saber isto é entender que a ciência não é, em si, nenhuma verdade objectiva, desligada da sociedade e da cultura em que se desenvolve e que importa questioná-la. Existirem preocupações, receios e hesitações perante uma nova vacina é mais que natural - faz parte da própria história das vacinas. As primeiras pessoas a colocar questões até serão, provavelmente, aquelas que estão diretamente envolvidas nos processos científicos e laboratoriais da produção de vacinas, sendo normal que haja visões e abordagens possivelmente contraditórias e em constante mudança.

Ainda assim, neste momento, as provas da eficácia da vacina no combate à mortalidade da Covid-19 estão amplamente divulgadas e são facilmente acessíveis, em artigos e estatísticas constantemente actualizadas. Ainda assim, a desinformação encontra sempre o seu caminho paralelo, as estatísticas são reapropriadas fora de contexto e a maior parte das pessoas tem mais facilidade em ler uma crónica de opinião sem fact checking ou um vídeo qualquer no youtube do que um artigo exaustivo ou um estudo científico, cuja linguagem é inevitavelmente específica e complicada.

Neste turbilhão do presente, em que informações contraditórias são efectivamente divulgadas a toda a hora e em que ainda muito não se sabe nem se pode saber (inclusive no que diz respeito ao surgimento de novas variantes que põem à prova a própria eficácia das vacinas a longo prazo) - há muitas razões para ter dúvidas. Ao mesmo tempo, parece existir uma confusão entre "informação" e "conhecimento" e uma pressão para formular uma opinião acerca de um assunto complexo e que exige alguma especialização, numa era em que o acesso à informação é extremamente democratizado.

Em alguns casos, a desconfiança é causada pela suposta "rapidez" com que esta vacina foi desenvolvida e disponibilizada, sem que se faça, por exemplo, uma reflexão sobre o lado do mundo em que nos encontramos - será que se isto fosse um vírus que se propagasse no dito Sul Global, o financiamento para a vacina tinha surgido assim tão "depressa"...? (Já agora, tomar vacinas para viajar para certos países não é novidade). Não admira que seja no Ocidente que o furor anti-vacinas tem os seus maiores adeptos. O berço imperialista deste nosso mundo, onde os países mais ricos patenteiam e acumulam vacinas e os mais pobres continuam a morrer à espera da primeira dose. Desse apartheid não falam, pois isso implicaria defender o igual acesso à vacinação de todas as pessoas do mundo. É melhor concentrar os esforços em combater o privilégio de viver num país onde esse acesso existe e depois auto-intitularem-se prejudicados.

Como temos visto, a desigualdade no acesso à vacina é um dos principais factores que tem dificultado a contenção do vírus a nível global. As pessoas esquecem-se que partilham o mundo com o resto do mundo; os países "desenvolvidos" preferem sempre a separação à solidariedade.

Além disso, vemos também uma divisão política nítida no que diz respeito à defesa da toma das vacinas ou mesmo das medidas de restrição e contenção de contágios que têm afectado as vidas de tanta gente, especialmente em países como o Brasil e os EUA - onde os próprios governos contribuíram para a difusão de teorias da conspiração contra vacinas e medidas, e onde os números de mortalidade são incomparavelmente mais elevados do que em qualquer outro lugar. Tal como nos EUA e no Brasil, os movimentos anti-vaxx na Europa também estão ligados ao ressurgimento da extrema direita populista e à sua instrumentalização do medo - mesmo antes da pandemia. Isto faz parte de um problema muito maior, que diz respeito à apropriação de posições anti-sistema por esses mesmos movimentos. Isto não acontece apenas com a extrema direita mas também com a direita neoliberal, duas faces da mesma moeda que, de "anti-sistema", nada têm.

De facto, as premissas da direita sempre estiveram do lado do Capital e contra qualquer luta anti-sistémica. Até porque o capitalismo não é só um sistema financeiro, é também um sistema social e ideológico, criado em torno do indivíduo e da sua produtividade, que corrói a nossa percepção de sociedade e de comunidade. A apropriação liberal e individualista do conceito de "liberdade" é uma das mais visíveis e preocupantes ferramentas contra a percepção de que vivemos num mundo desigual e interdependente. Porque será que os países que realmente tentam implantar medidas políticas e económicas anti-capitalistas são imediatamente tornados alvos de propaganda e sanções inimagináveis, acusados de autoritarismo precisamente em nome de uma suposta concepção de "liberdade" universalizada...?
Curiosamente, muitos destes países são aqueles que mais eficazmente mobilizaram as suas populações no sentido da entreajuda e do cumprimento das medidas, em prol de um esforço colectivo e solidário - até mesmo no que diz respeito às vacinas.

Por outro lado, o individualismo de base das democracias liberais em pouco contribuiu de positivo na vivência e no combate desta pandemia, antes pelo contrário, já que o direito à "liberdade de escolha" ou à "liberdade individual" foi um dos fundamentos para os argumentos mais usados por aqueles que se insurgiram (e continuam a insurgir-se) contra a adopção das medidas de contenção universais como o uso da máscara, a testagem e a toma das vacinas. Da mesma forma, não contribui, de todo, para dar resposta aos problemas estruturais que esta pandemia apenas veio tornar mais óbvios.

Mas a "culpa" não é só da incapacidade de olhar para fora do próprio umbigo, até porque essa incapacidade tem um contexto e uma longa história. Mais uma vez, o facto de vivermos numa sociedade que fomenta esse tipo de visão individualista da vida em sociedade, de, cada vez mais, sermos confrontados com o falhanço do Estado em responder às necessidades das pessoas, de o desinvestimento em serviços públicos de qualidade ser cada vez maior, etc., leva a que sejamos cada vez mais incapazes de confiar nessa(s) estrutura(s) - e com muitas razões para tal. Infelizmente, a maior parte das pessoas que se queixa de "falta de liberdade" está mais preocupada em não poder ir ao restaurante sem ter de mostrar um teste do que empenhada em defender medidas que protejam toda a gente - não só os que vão almoçar a restaurantes mas também aqueles que, todos os dias, têm de apanhar transportes públicos para ir trabalhar, quem está na linha da frente, quem não tem condições de habitação dignas, etc... Não é preciso inventar um apartheid quando essa separação já existe. Não é preciso monopolizar o medo contra um outro medo que já existe e que é bem mais real. Defender o "cada um sabe de si" é ignorar que o que cada um faz afecta os outros, ainda mais no contexto de uma pandemia altamente contagiosa, que não só não é democrática (visto que não afecta toda a gente da mesma forma), como ameaça a capacidade dos nossos sistemas de saúde de lhe responder. 

Em Portugal, um dos países da Europa com uma das maiores taxas de vacinação, ser anti-vaxxer ou negacionista é um luxo - um privilégio dos que "não são como os outros". Mas os queixumes contra o suposto autoritarismo das medidas sanitárias seriam mais bem usados contra o crescimento da extrema-direita (essa sim, definitivamente autoritária), contra o enviesamento da imprensa, contra as crescentes políticas económicas neoliberais de um governo que se diz socialista, contra o desinvestimento no SNS e aqueles que o defendem, contra a deterioração do ambiente e da qualidade de vida nas cidades, contra apropriação da situação para instaurar sentimentos de caos e controlar movimentos, contra o policiamento absurdo, e tantas outras coisas... Vivemos num mundo complexo, contraditório, cheio de problemas que se interligam. 

Ninguém está satisfeito com esta situação (tirando, talvez, os bilionários que têm multiplicado os seus biliões à custa da pandemia, e sim, as farmacêuticas serão um exemplo) e ninguém quer que a situação continue como está - é uma situação excepcional que, por isso, exige esforços excepcionais. Cada vez mais seremos confrontados com crises - não é essa a natureza do capitalismo? Porque não aproveitar para reflectir na insustentabilidade deste sistema no seu todo? Porque não usar a nossa justificada intolerância perante a incerteza e a instabilidade para procurar pontes em vez de ilhas? Para procurar a esperança em vez do medo? Até porque, "se a liberdade é um valor estritamente individual, e não uma construção coletiva negociada, nada podemos contra este vírus. Porque ele não depende das defesas individuais, mas do grupo." (D. Oliveira no Expresso)


++ leituras

Uma vida privada: pandemia e capitalismo

"My Own Private Body": política da vacinação

Epidemia total

A pandemia e os gestos: da caridade à radicalização dos cuidados numa quarentena interminável

Afasta-te da liberdade deles

CoronaChoque e socialismo

Eugenia, biopoder e políticas da morte em tempos de pandemia

Sobre socialismo e liberdade

para ouvir

Porque tantos deixaram de confiar na ciência?