17/03/21

aporia ou a linha que atravessa tudo

"a deslocação do mundo, eis o tema da arte" (Brecht via Didi-Huberman), continua: "impossível afirmar que, sem desordem, não haveria nem poderia haver arte: não conhecemos mundo que não seja desordem".

Warburg "nunca dizia: isto é verdadeiro, aquilo é falso. Dizia: isto está velado pelo sofrimento" (Klaus Berger). Fundaria uma antropologia das imagens e uma história das imagens como a história de uma tragédia "sempre renovada entre o pior dos monstra e o melhor dos astra, o sofrimento e a sophrosyne, a deslocação do mundo e o esforço de reconstrução, de remontagem, para constituir um 'corte no caos'" (Didi-Huberman).

há uma generosidade que emerge nesta história, nesta construção de Warburg, um movimento que abre em vez de fechar, que aceita o dissemelhante como ponto de partida. 'um corte no caos' é, por si apenas, uma imagem vigorosa e simultaneamente humilde, reflexo da admissão de que o acesso terá de ser feito sempre através do parcial, do local, da amostra possível. a totalidade é uma quimera. e no entanto, vivemos ainda nos escombros de um projecto filosófico que tentou encontrá-la, aplicá-la, apreendê-la. e não foi generosa a filosofia, na sua constante procura das leis que a todos servissem, das questões que a todos atravessam? no caminho ficaram histórias por registar, vozes por considerar. sabemos. sabemos que o 'universal' foi ocidentalizado, que o ocidente foi universalizado e que, neste lado do mundo, é esse 'universal' que conta. é fácil esquecermo-nos de que o filósofo, o metafísico, também tem um corpo. que a sua voz sai desse corpo. questionar a origem do conhecimento e a valência da sua universalidade também passa por dar corpo à voz que o produz, relembrar o lugar que ocupa.

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aporia, segundo a mitologia grega, é o daemon da dificuldade, da impotência, do desamparo. é o caminho sem saída, o paradoxo, o impasse, o momento da contradição. J. Derrida viria depois a identificar a aporia com a leitura desconstrutiva do texto, mas também a defini-la como um núcleo de tensão que impede que o sentido de um texto se possa fixar, a inscrição de um nível de indeterminação, de impasses (que cabe ao leitor desconstruir). e porque ultimamente tudo tem convergido no sentido de pensar o movimento, reencontro na aporia uma linha que atravessa tudo. não há saídas na busca pelo unívoco, ou pela estabilidade permanente, e existir talvez seja admitir a impossibilidade de superar a contradição que é existir. ainda assim, tentamos, e vamos a isso.

motes, leis, fórmulas: afagos momentâneos (e aí está uma contradição) nas ciências humanas (e por vezes até nas outras). "a deslocação do mundo, eis o tema da arte". mas não só da arte (?). com o contributo de Warburg e de muitos outros permitimo-nos aceitar uma versão do próprio conhecimento das coisas que se faz através de uma ciência inquieta, que não se fixa. constelação de aporias que procuramos, ainda assim, resolver ou transpôr. mas quantas vezes as soluções sugeridas fecharam em vez de abrir? quantas vezes a natureza não foi apresentada como equivalente à estabilidade e ao equilíbrio, definindo como anómalas as inconsistências e as contradições?

Aristóteles já problematizara esta 'regra médica' de fazer equivaler o são ao estável, sugerindo que talvez não seja assim. mas também ele nos deixou uma definição da aporia: "a igualdade de conclusões contraditórias" em que o problema está no concluir. o impasse é o contrário da conclusão e o caminho só não tem saída quando paramos no impasse."Hannah Arendt mostrou que o ponto em que o pensamento fracassa é justamente aquele em que devemos persistir nele (...) imprimir-lhe uma nova direcção" (Didi-Huberman, Imagens apesar de tudo).

considerar a aporia como o impasse que impede a fixidez e, simultaneamente, como uma linha que tudo atravessa, evoca uma irreconciliação que é necessária para apreender o que nos rodeia, e exige uma reticência (muitas reticências...) perante o que se nos apresenta como uma certeza ou uma verdade total e estática. importa também imaginar o impasse ou a contradição como uma linha que não é recta mas emaranhada, que perfura o entendimento em curvas e nós, que é trama irregular e inacabada, sem remate. as questões sem resposta (fechada), os caminhos sem saída (única), o desamparo perante a dificuldade / o problema / o paradoxo.

em Aporias. Dying - awaiting (one another) at the limits of truth (1993), Derrida já problematizara a aporia numa reflexão em torno das fronteiras, das linhas que separam, definem 'diferenças' (diferentes territórios, países ou culturas; diferentes áreas do saber e domínios do discurso; diferentes conceitos), fronteiras que impedem ou permitem passagens (movimentos, deslocações), fronteiras intransponíveis (portas fechadas). neste seu texto sobre a(s) aporia(s) e os seus 'lugares' bem conhecidos - "the places of aporia in which I have found myself, let us say, regularly tied up, indeed, paralyzed" - Derrida sugere que a experiência aporética ou da aporia possa ser uma resistência não-passiva, traduzida numa espécie de condição da responsabilidade e da decisão. assim se entende que a desconstrução possa ser uma experiência da aporia e do impossível.

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talvez a aporia possa ser um conceito útil para pensar também, mais especificamente, na questão das identidades marginalizadas, no corpo que existe (e resiste), apesar de tudo, que contradiz e contraria a fixidez das normas, o binarismo, as hierarquias organizadas, a narrativa histórica contada pelo lado do 'vencedor'. na dificuldade de existir num corpo e numa identidade que não se conformam, que não se fixam (num mundo que, por causa disso, os marginaliza e exclui, fechando caminhos), poderemos encontrar um exemplo concreto e personificado da aporia enquanto experiência do paradoxo? a não-correspondência com a imagem fixada, o abismo da incerteza e da impotência, a incapacidade de racionalizar as causas do desamparo (postas em causa pelo próprio corpo que continua sendo): não serão linhas que atravessam constantemente as existências dos corpos que vivem em permanente contradição com as estruturas rígidas que definem o que é, ou não, 'normal' e 'natural'? o que é, ou não, são 'saudável' e 'equilibrado'? estruturas que se aguentam apenas devido a essas definições (construções) por desmantelar, por desconstruir.

pensar a aporia será, por isso, pensar os limites (as fronteiras, como faz Derrida), não apenas a morte, mas os que atravessam a própria vida.

o que teríamos a aprender com as culturas nómadas, cuja forma de vida é precisamente o movimento e a não-delimitação de fronteiras (físicas)? que noção de identidade será construída por um corpo que efectivamente não se fixa? 

Louise Bourgeois, Untitled (2003-05)
















a ler também:
the feminist nomad: the all women group show - Jenni Sorkin
a gathering of aporetic form - Rizvana Bradley

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P.S.: interessante encontrar, depois da escrita deste texto, uma tese de doutoramento da feminista e activista Suryia Nayak, que faz uso da teoria da aporia das fronteiras (a partir de Derrida) para pensar o feminismo negro (através de uma releitura de Audre Lorde), assim:

"The predicament of the margin, border and boundary is pursued throughout each chapter of the thesis. I propose that critical analysis of the aporia of margins provokes a critical re-working of the politics of being on the margins, marginalised and marginality. Re-reading Lorde through a re-reading of Derrida, I propose a re-working of ‘...we have no patterns for relating across our human differences as equals’ (Lorde, 1980a:115). Here, re-readings, in which intertextuality and intersubjectivity are in a relation of infinite and mutual referral and deferral, contest the existence of established, stable patterns."

08/03/21

activismo e lugar de fala: responsabilizar o opressor

*** neste contexto, o sujeito opressor não tem de ser alguém que oprime consciente e/ou voluntariamente mas alguém cujo poder lhe permite oprimir, nomeadamente beneficiando constantemente desse poder e privilégio dentro de um determinado sistema de opressão estrutural (racismo / machismo / heteronormatividade / capacitismo / ...)


existe uma certa confusão relativamente a quem pode falar na(s) luta(s) pelos direitos e contra a(s) opressão(ões). é uma questão que surge recorrentemente nas discussões sobre activismo, representatividade e protagonismo nos movimentos de luta. não só existe uma enorme exigência colocada nas pessoas que sofrem a opressão contra a qual lutam como, ao mesmo tempo, uma defesa do silenciamento daquelas que, pelo contrário, beneficiam dessa mesma opressão e desigualdade. as pessoas que, consciente ou inconscientemente, beneficiam ou são privilegiadas do e pelo mesmo sistema que oprime, raramente são consideradas como porta-vozes necessárias na luta contra esse sistema. 

muitas vezes, confunde-se esta responsabilização com o risco do reconhecimento 'imerecido' ou do consequente silenciamento das vozes que, sem dúvida, serão (e deveriam ser sempre) as protagonistas desses mesmos movimentos. riscos que não devem ser ignorados. porém, é estranho que, à pessoa que sofre a opressão, se exija sempre que lute, que fale e que eduque e, pelo contrário, à pessoa que muitas vezes beneficia dessa opressão, que se cale e seja ensinada, que fique num lugar passivo. não só existe essa pressão desigual e constante como, consequentemente, essa pressão se transforma numa negação de subjectividade da pessoa oprimida, pois espera-se que fale, não apenas por si, mas sempre por toda a gente que sofre essa mesma opressão. 

é certo que a colectividade e a noção estrutural são condições necessárias na luta pelos direitos, o empoderamento nasce da união de forças e pessoas por uma mesma causa - foram sempre os movimentos colectivos que conquistaram e continuam a lutar pelos direitos e liberdades, a denunciar as desigualdades e opressões que são sistémicas. não existe mudança sem colectivo e sem o reconhecimento das estruturas que afectam colectivamente e de forma semelhante as vidas de muita gente. ao mesmo tempo, é esperada uma homogeneização dessas mesmas vozes que muitas vezes impede a validação de pluralismos ou a expressão individual dentro dos próprios movimentos. há um reconhecimento das experiências partilhadas e, ao mesmo tempo, a negação do olhar particular sobre essas experiências - mesmo tendo em conta que, dentro desse olhar, possam existir contradições.

no fundo, há uma responsabilização enorme atribuída a quem está na base das hierarquias que, não só tem o dever de se emancipar a si mesma, como a toda a gente que é oprimida (de preferência sem cometer erros e sem se contradizer). ao mesmo tempo, espera-se que seja uma fonte educativa constante e é-lhe exigido um constante esforço mental e uma enorme resiliência emocional. muitas vezes, não existe a reflexão de que esta exigência funciona também como uma perpetuação do abuso e da desigualdade e, ao mesmo tempo, como uma desresponsabilização do sujeito que continua a beneficiar dessa(s) mesma(s) desigualdade(s).

responsabilizar o opressor na luta contra a opressão não se traduziria nunca na substituição das vozes das pessoas que a sofrem, mas sim na necessidade de construir um discurso responsável, auto-crítico e, idealmente, interseccional, capaz de escutar, dialogar e responder, de desconstruir sistemas de opressão a partir de um reconhecimento dos privilégios e do poder (a abdicar, sim). não seria nunca uma ocupação do lugar de quem reivindica nem uma apropriação dessas reivindicações, mas uma distribuição justa de responsabilidade e de tarefas na sua divulgação. dar a quem beneficia do sistema de opressão um lugar passivo (e calado) é não pôr em causa a importância de uma consciencialização colectiva sobre a cumplicidade e inacção que perpetuam esse sistema.

o privilégio deve ter um lugar de fala. uma pessoa branca pode (e deve) falar de racismo, não porque consegue 'imaginar' ou 'empatizar' com a pessoa que sofre de racismo, nem para falar do que é sofrer de racismo (pois isso nunca vai saber) mas enquanto pessoa que beneficia (e sempre beneficiou) do racismo, tomando consciência do seu privilégio e criando um discurso que o ponha em causa. reconhecer que, em muitas instâncias, é afectada positivamente por esse sistema de opressão. existe talvez uma ausência de discurso crítico sobre o privilégio e uma confusão permanente em relação à legitimidade desse discurso. por um lado, confunde-se essa legitimidade com o perigo do protagonismo e, por outro, não se concilia a necessidade desse discurso com uma compreensão alargada dos sistemas de poder e opressão. 

e de facto, é muito idealista esperar a 'colaboração' de quem beneficia desses sistemas na sua desconstrução (e destruição)... a história das lutas pelos direitos, em todas as suas vertentes, mostra-nos que a iniciativa parte sempre daqueles que sofrem as desigualdades, que a luta pela igualdade é sempre impulsionada pelas pessoas que são oprimidas. esta história habituou-nos (obviamente) a uma desconfiança relativamente a possíveis expectativas de responsabilizar o opressor - e talvez seja irremediável. verdade seja dita, parece-nos inconcebível que a mudança seja sequer desejada por parte daqueles que beneficiam de um certo sistema de opressão, quanto mais impulsionada (estaríamos muito mal se nos sentássemos à espera da sua tomada de iniciativa).

e é claro que tudo fica mais complicado quando constatamos que uma mesma pessoa pode ser beneficiada e oprimida ao mesmo tempo, consoante o sistema em causa. a consciência da interseccionalidade (das opressões e das suas respectivas lutas) é essencial para compreender que não existem uns de um lado e outros do outro, que estas não são categorias estanques mas condições que podem conviver num mesmo sujeito. como no caso de uma mulher branca que beneficia do racismo mas é oprimida pelo machismo ou de um homem gay que beneficia do privilégio masculino mas é vítima do preconceito homofóbico. isto provoca, por exemplo, a reprodução da opressão por parte de pessoas que também são oprimidas, em vez de uma união de forças (mas talvez esta reflexão possa ficar para outro texto).

ao mesmo tempo, isto faz com que imaginemos sempre uma espécie de negociação interesseira por trás do lugar de fala de quem é "privilegiado" nas discussões sobre sistemas de opressão ou nas lutas pelos direitos. é tão inconcebível esperar a cooperação de quem beneficia da desigualdade que, quando esse alguém se pronuncia sobre ela, é expectável que, de alguma forma, esteja, na verdade, a beneficiar-se a si própria. este pensamento não só é legítimo como, na maior parte das vezes, se confirma. o que não falta são activismos performativos, motivados, não propriamente pelo desejo de mudança estrutural, mas pela possibilidade de lucrar com a exibição de uma tomada de posição que, em alguns círculos, será congratulada (e até traduzida em profit económico). 

certamente causa-nos estranheza ver movimentos feministas liderados por homens, movimentos anti-racistas cujo porta-voz é uma pessoa branca, movimentos pelos direitos LGBTQI+ protagonizados por pessoas hetero-cis ou, algo que acontece muito numa sociedade capitalista, marcas e corporações que se apropriam de políticas identitárias, as transformam em 'slogans' e as instrumentalizam para vender produtos. por tudo isto (todos estes 'riscos'), é mais que positivo e urgente questionar a representatividade na liderança dos movimentos e lutas e desconfiar quando o protagonismo é dado a pessoas que, não sendo oprimidas pelo sistema que criticam, chegam até a poder beneficiar dessa posição, ao mesmo tempo que silenciam as pessoas que realmente são oprimidas. encontramos inclusive discursos paternalistas a justificar este protagonismo...

responsabilizar o opressor não é portanto - não pode ser - paternalizar quem sofre opressões, muito menos roubar-lhes espaço, ou lucrar à custa das suas causas. não é um favor, não é uma acção de salvação, não é uma caridade que mereça recompensa. 

mas será que existe a possibilidade de mudança estrutural sem envolver o opressor na consciencialização e abdicação do seu poder / privilégio? será possível desmontar sistemas de opressão sem o reconhecimento e contributo de quem tem o poder de abdicar do poder? e seguindo essa linha de reflexão, não seria produtivo começar a exigir um lugar de fala para o privilégio nas lutas e movimentos que o implique activamente? se não existe uma articulação discursiva engajada sobre a forma como esse privilégio e poder são o reverso da opressão e da desigualdade, se não há, sobretudo, uma auto-reflexão por parte de quem é privilegiada (mesmo quando inconscientemente) na perpetuação da opressão, não estaremos a manter, de certa forma, a mesma desigualdade que pretendemos combater? 

e sim, talvez seja idealista imaginar a possibilidade de um trabalho conjunto entre quem oprime e quem é oprimido. até porque há algo implícito neste desequilíbrio que precisa também de ser desconstruído / desmistificado: a crença de que a luta pelos direitos é uma luta que pertence a quem os reivindica para si e não uma luta de todes, como se a igualdade fosse prejudicar alguém quando, na verdade, só beneficiaria toda a gente. imaginem só!


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nota: estas reflexões devem muito ao trabalho da activista e poetisa brasileira Tatiana Nascimento sobre racismo, decolonialismo e branquitude.


04/03/21

movimento e diálogo na construção da história

hoje sabemos melhor que a história é algo que se constrói e que se vai construindo. noções de tempo pós (ou anti) hegelianas abrem portas à pluralidade do(s) tempo(s) histórico(s) e a uma história que não é mais linear nem homogénea mas sim que reflecte, na sua própria narrativa, as estruturas de poder e exclusão que existem por trás do funcionamento das coisas e da forma como são conhecidas. se a 'mudança' é uma consequência inevitável da passagem do tempo é porque a própria percepção do tempo passado muda com a sua passagem, é porque a história se constrói e se vai construindo à medida que acontece. mais ainda, é porque a história também (se) desconstrói. 

questionar e desconstruir as narrativas históricas torna-se claramente necessário se pensarmos ainda no lugar do sujeito que as constrói - quem escreve a história? - e quando reflectimos sobre a forma como esse lugar é absolutamente cúmplice na manutenção (ou desconstrução) das estruturas de poder e exclusão já referidas e que têm servido de base às narrativas produzidas. porém, ao aceitar que a história se constrói e desconstrói em movimento - e ao abordá-la através desse mesmo movimento - abrimos a possibilidade de considerar essas estruturas (efectivamente existentes) não como pontos de partida inquestionáveis mas enquanto parte da história a desconstruir. 

há algo de revolucionário na produção de conhecimento sobre a história, na produção de narrativas históricas, e que tem a ver com a possibilidade de confronto e diálogo, com o poder de questionar o poder, e mesmo com o potencial de reparação que esse esforço dialético permite. talvez por isso o movimento decolonial tenha feito desse conhecimento um dos principais objectivos na luta pela emancipação e, pelo contrário, o sujeito colonizador, que construíu a narrativa história (canonizada), defenda com unhas e dentes a 'cristalização' dessa história, e se oponha constantemente à sua desconstrução...

por um lado, esta perspectiva permite-nos falar de responsabilidade histórica e de, mais uma vez, considerar a história não como um pano de fundo imóvel, mas como algo que continua a acontecer constantemente, algo de que fazemos parte ininterruptamente e que está profundamente ligada à nossa experiência presente - não só social como individual e identitária. por outro, há uma questão que se desenrola a partir desta 'divisão' (mesmo sabendo que nem o mundo nem o sujeito se dividem em dois ou em dois apenas, mas que, tal como há tempos múltiplos, há múltiplos lugares, vivências plurais desses lugares): como pode a herança colonial ser desconstruída por quem, de alguma forma ou de várias, beneficia da estrutura de poder e desigualdade vigente e, por conseguinte, da narrativa histórica que a promove / mantém? como abraçar uma desconstrução dessa narrativa que pretende questionar (se não mesmo abalar) as bases daquilo que essa herança representa para a própria identidade do sujeito cultural que a herdou? 

no fundo, como pôr em curso um projecto de desconstrução da história sem aceitar a urgência de uma crise identitária que permita ir ao fundo da questão? sem aceitar a instabilidade histórica, os seus movimentos, a sua (inter)dependência humana, sem reconhecer o potencial das relações entre as coisas na própria abordagem, sem ultrapassar os constrangimentos cronológicos a que a linearidade histórica obriga, sem conectar em vez de catalogar /separar - ou superando essa separação? é que talvez (!) essa catalogação - e, sobretudo, a hierarquia que institui - não seja necessária nem indestrutível... inevitavelmente, ela é uma lente que precisamos de considerar quando olhamos para o mundo, ela está lá e produziu determinadas leituras, que tantas vezes aceitámos sem revisão. acreditar que essa é a única lente ao nosso dispôr é negar a riqueza do diálogo e da imaginação.

a questão está aqui, procuram-se respostas (possíveis, várias). sobretudo procuram-se formas de participar nessa desconstrução. porque o que é certo é que não, não é possível desconstruir estruturas sociais sem desconstruir as narrativas históricas que as apoiam. e não é possível desconstruir as narrativas históricas se não for posto em causa o próprio carácter dessa construção que é a história: móvel, instável, dialética, viva, em constante actualização e não mais fechada, contida e indisputável dentro dos livros ou na pedra das estátuas.


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algumas das leituras adjacentes:

Didi-Huberman, Georges (2011) Atlas ou a Gaia Ciência Inquieta. trad. R. C. Botelho e R. P. Cabral, Lisboa, KKYM+EAUM, 2013.

Vlachou, Foteini (2016) 'Why Spatial? Time and the Periphery'. Visual Resources.

(e também 'Aby Warburg e Walter Benjamin: a legibilidade da história', 2016, de Maria João Cantinho)

*mais ainda: o Fanon e a Grada Kilomba

a imagem é do filme Les Statues Meurent Aussi (1953) de Alain Resnais e Chris Marker