Warburg "nunca dizia: isto é verdadeiro, aquilo é falso. Dizia: isto está velado pelo sofrimento" (Klaus Berger). Fundaria uma antropologia das imagens e uma história das imagens como a história de uma tragédia "sempre renovada entre o pior dos monstra e o melhor dos astra, o sofrimento e a sophrosyne, a deslocação do mundo e o esforço de reconstrução, de remontagem, para constituir um 'corte no caos'" (Didi-Huberman).
há uma generosidade que emerge nesta história, nesta construção de Warburg, um movimento que abre em vez de fechar, que aceita o dissemelhante como ponto de partida. 'um corte no caos' é, por si apenas, uma imagem vigorosa e simultaneamente humilde, reflexo da admissão de que o acesso terá de ser feito sempre através do parcial, do local, da amostra possível. a totalidade é uma quimera. e no entanto, vivemos ainda nos escombros de um projecto filosófico que tentou encontrá-la, aplicá-la, apreendê-la. e não foi generosa a filosofia, na sua constante procura das leis que a todos servissem, das questões que a todos atravessam? no caminho ficaram histórias por registar, vozes por considerar. sabemos. sabemos que o 'universal' foi ocidentalizado, que o ocidente foi universalizado e que, neste lado do mundo, é esse 'universal' que conta. é fácil esquecermo-nos de que o filósofo, o metafísico, também tem um corpo. que a sua voz sai desse corpo. questionar a origem do conhecimento e a valência da sua universalidade também passa por dar corpo à voz que o produz, relembrar o lugar que ocupa.
.
aporia, segundo a mitologia grega, é o daemon da dificuldade, da impotência, do desamparo. é o caminho sem saída, o paradoxo, o impasse, o momento da contradição. J. Derrida viria depois a identificar a aporia com a leitura desconstrutiva do texto, mas também a defini-la como um núcleo de tensão que impede que o sentido de um texto se possa fixar, a inscrição de um nível de indeterminação, de impasses (que cabe ao leitor desconstruir). e porque ultimamente tudo tem convergido no sentido de pensar o movimento, reencontro na aporia uma linha que atravessa tudo. não há saídas na busca pelo unívoco, ou pela estabilidade permanente, e existir talvez seja admitir a impossibilidade de superar a contradição que é existir. ainda assim, tentamos, e vamos a isso.
motes, leis, fórmulas: afagos momentâneos (e aí está uma contradição) nas ciências humanas (e por vezes até nas outras). "a deslocação do mundo, eis o tema da arte". mas não só da arte (?). com o contributo de Warburg e de muitos outros permitimo-nos aceitar uma versão do próprio conhecimento das coisas que se faz através de uma ciência inquieta, que não se fixa. constelação de aporias que procuramos, ainda assim, resolver ou transpôr. mas quantas vezes as soluções sugeridas fecharam em vez de abrir? quantas vezes a natureza não foi apresentada como equivalente à estabilidade e ao equilíbrio, definindo como anómalas as inconsistências e as contradições?
Aristóteles já problematizara esta 'regra médica' de fazer equivaler o são ao estável, sugerindo que talvez não seja assim. mas também ele nos deixou uma definição da aporia: "a igualdade de conclusões contraditórias" em que o problema está no concluir. o impasse é o contrário da conclusão e o caminho só não tem saída quando paramos no impasse."Hannah Arendt mostrou que o ponto em que o pensamento fracassa é justamente aquele em que devemos persistir nele (...) imprimir-lhe uma nova direcção" (Didi-Huberman, Imagens apesar de tudo).
considerar a aporia como o impasse que impede a fixidez e, simultaneamente, como uma linha que tudo atravessa, evoca uma irreconciliação que é necessária para apreender o que nos rodeia, e exige uma reticência (muitas reticências...) perante o que se nos apresenta como uma certeza ou uma verdade total e estática. importa também imaginar o impasse ou a contradição como uma linha que não é recta mas emaranhada, que perfura o entendimento em curvas e nós, que é trama irregular e inacabada, sem remate. as questões sem resposta (fechada), os caminhos sem saída (única), o desamparo perante a dificuldade / o problema / o paradoxo.
em Aporias. Dying - awaiting (one another) at the limits of truth (1993), Derrida já problematizara a aporia numa reflexão em torno das fronteiras, das linhas que separam, definem 'diferenças' (diferentes territórios, países ou culturas; diferentes áreas do saber e domínios do discurso; diferentes conceitos), fronteiras que impedem ou permitem passagens (movimentos, deslocações), fronteiras intransponíveis (portas fechadas). neste seu texto sobre a(s) aporia(s) e os seus 'lugares' bem conhecidos - "the places of aporia in which I have found myself, let us say, regularly tied up, indeed, paralyzed" - Derrida sugere que a experiência aporética ou da aporia possa ser uma resistência não-passiva, traduzida numa espécie de condição da responsabilidade e da decisão. assim se entende que a desconstrução possa ser uma experiência da aporia e do impossível.
.
talvez a aporia possa ser um conceito útil para pensar também, mais especificamente, na questão das identidades marginalizadas, no corpo que existe (e resiste), apesar de tudo, que contradiz e contraria a fixidez das normas, o binarismo, as hierarquias organizadas, a narrativa histórica contada pelo lado do 'vencedor'. na dificuldade de existir num corpo e numa identidade que não se conformam, que não se fixam (num mundo que, por causa disso, os marginaliza e exclui, fechando caminhos), poderemos encontrar um exemplo concreto e personificado da aporia enquanto experiência do paradoxo? a não-correspondência com a imagem fixada, o abismo da incerteza e da impotência, a incapacidade de racionalizar as causas do desamparo (postas em causa pelo próprio corpo que continua sendo): não serão linhas que atravessam constantemente as existências dos corpos que vivem em permanente contradição com as estruturas rígidas que definem o que é, ou não, 'normal' e 'natural'? o que é, ou não, são 'saudável' e 'equilibrado'? estruturas que se aguentam apenas devido a essas definições (construções) por desmantelar, por desconstruir.
pensar a aporia será, por isso, pensar os limites (as fronteiras, como faz Derrida), não apenas a morte, mas os que atravessam a própria vida.
o que teríamos a aprender com as culturas nómadas, cuja forma de vida é precisamente o movimento e a não-delimitação de fronteiras (físicas)? que noção de identidade será construída por um corpo que efectivamente não se fixa?
a ler também:
the feminist nomad: the all women group show - Jenni Sorkin
a gathering of aporetic form - Rizvana Bradley