04/03/21

movimento e diálogo na construção da história

hoje sabemos melhor que a história é algo que se constrói e que se vai construindo. noções de tempo pós (ou anti) hegelianas abrem portas à pluralidade do(s) tempo(s) histórico(s) e a uma história que não é mais linear nem homogénea mas sim que reflecte, na sua própria narrativa, as estruturas de poder e exclusão que existem por trás do funcionamento das coisas e da forma como são conhecidas. se a 'mudança' é uma consequência inevitável da passagem do tempo é porque a própria percepção do tempo passado muda com a sua passagem, é porque a história se constrói e se vai construindo à medida que acontece. mais ainda, é porque a história também (se) desconstrói. 

questionar e desconstruir as narrativas históricas torna-se claramente necessário se pensarmos ainda no lugar do sujeito que as constrói - quem escreve a história? - e quando reflectimos sobre a forma como esse lugar é absolutamente cúmplice na manutenção (ou desconstrução) das estruturas de poder e exclusão já referidas e que têm servido de base às narrativas produzidas. porém, ao aceitar que a história se constrói e desconstrói em movimento - e ao abordá-la através desse mesmo movimento - abrimos a possibilidade de considerar essas estruturas (efectivamente existentes) não como pontos de partida inquestionáveis mas enquanto parte da história a desconstruir. 

há algo de revolucionário na produção de conhecimento sobre a história, na produção de narrativas históricas, e que tem a ver com a possibilidade de confronto e diálogo, com o poder de questionar o poder, e mesmo com o potencial de reparação que esse esforço dialético permite. talvez por isso o movimento decolonial tenha feito desse conhecimento um dos principais objectivos na luta pela emancipação e, pelo contrário, o sujeito colonizador, que construíu a narrativa história (canonizada), defenda com unhas e dentes a 'cristalização' dessa história, e se oponha constantemente à sua desconstrução...

por um lado, esta perspectiva permite-nos falar de responsabilidade histórica e de, mais uma vez, considerar a história não como um pano de fundo imóvel, mas como algo que continua a acontecer constantemente, algo de que fazemos parte ininterruptamente e que está profundamente ligada à nossa experiência presente - não só social como individual e identitária. por outro, há uma questão que se desenrola a partir desta 'divisão' (mesmo sabendo que nem o mundo nem o sujeito se dividem em dois ou em dois apenas, mas que, tal como há tempos múltiplos, há múltiplos lugares, vivências plurais desses lugares): como pode a herança colonial ser desconstruída por quem, de alguma forma ou de várias, beneficia da estrutura de poder e desigualdade vigente e, por conseguinte, da narrativa histórica que a promove / mantém? como abraçar uma desconstrução dessa narrativa que pretende questionar (se não mesmo abalar) as bases daquilo que essa herança representa para a própria identidade do sujeito cultural que a herdou? 

no fundo, como pôr em curso um projecto de desconstrução da história sem aceitar a urgência de uma crise identitária que permita ir ao fundo da questão? sem aceitar a instabilidade histórica, os seus movimentos, a sua (inter)dependência humana, sem reconhecer o potencial das relações entre as coisas na própria abordagem, sem ultrapassar os constrangimentos cronológicos a que a linearidade histórica obriga, sem conectar em vez de catalogar /separar - ou superando essa separação? é que talvez (!) essa catalogação - e, sobretudo, a hierarquia que institui - não seja necessária nem indestrutível... inevitavelmente, ela é uma lente que precisamos de considerar quando olhamos para o mundo, ela está lá e produziu determinadas leituras, que tantas vezes aceitámos sem revisão. acreditar que essa é a única lente ao nosso dispôr é negar a riqueza do diálogo e da imaginação.

a questão está aqui, procuram-se respostas (possíveis, várias). sobretudo procuram-se formas de participar nessa desconstrução. porque o que é certo é que não, não é possível desconstruir estruturas sociais sem desconstruir as narrativas históricas que as apoiam. e não é possível desconstruir as narrativas históricas se não for posto em causa o próprio carácter dessa construção que é a história: móvel, instável, dialética, viva, em constante actualização e não mais fechada, contida e indisputável dentro dos livros ou na pedra das estátuas.


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algumas das leituras adjacentes:

Didi-Huberman, Georges (2011) Atlas ou a Gaia Ciência Inquieta. trad. R. C. Botelho e R. P. Cabral, Lisboa, KKYM+EAUM, 2013.

Vlachou, Foteini (2016) 'Why Spatial? Time and the Periphery'. Visual Resources.

(e também 'Aby Warburg e Walter Benjamin: a legibilidade da história', 2016, de Maria João Cantinho)

*mais ainda: o Fanon e a Grada Kilomba

a imagem é do filme Les Statues Meurent Aussi (1953) de Alain Resnais e Chris Marker

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