08/12/23

mundo "livre"




Aqui, no mundo livre, civilizado, democrático, presenciamos o genocídio nos nossos pequenos ecrãs. Presenciamos a inação da nossa classe política perante a chacina, a sua surdez aos apelos em massa. Recebemos os números, os nomes, os dados e as provas inequívocas da violência mais vil, do sofrimento mais atroz, da destruição mais vasta. Abrimos e fechamos as redes sociais para interromper ou continuar o nosso dia de coração apertado. No nosso “mundo livre”, os nossos chefes de Estado, os nossos meios de comunicação e os comentadores de guerra nas nossas televisões continuam incapazes de se valer das palavras que realmente descrevem o que se passa e a prestar declarações de sangue na boca. As nossas universidades censuram e policiam estudantes, e nas nossas fronteiras erguem-se muros, tão altos quanto a cor da pele dos que delas se aproximam. No nosso “mundo livre”, é suposto termos orgulho nos nossos valores, e naquilo que as nossas nações construíram pela subjugação, a exploração e a pilhagem de outros povos. No nosso “mundo livre”, deveríamos estar solidários com quem é parecido connosco, e sabemos o que isso significa. Aqui, civilizar significa destruir, a liberdade compra-se e a democracia exclui.

Dizer que o que se passa em Gaza (e em todo o território ocupado da Palestina) também é sobre nós não reflete apenas uma necessidade de reconhecer que os sistemas de opressão estão interligados, e que a nossa liberdade pouco livre é se continua dependente da negação da liberdade do Outro. Que não há “mundo livre” nenhum. Este genocídio é mais um monstro gerado e alimentado pelo “mundo livre”, financiado por aqueles que sempre lucraram e continuam a ganhar com a colonização, a morte e a violência. Aquilo a que estamos a assistir é o resultado de décadas e décadas de ocupação e humilhação, devastação e desumanização permanentes, com o aval  do “mundo livre”. Quem diria que um conjunto de nações colonizadoras e orgulhosas iria criar e apoiar este monstro? Esta máquina de soldados facínoras? No “mundo livre”, a vida de uns não tem o mesmo valor que tem a vida de outros. Nunca teve. Essa é a lição da missão civilizacional do “mundo livre”.

Fazemos parte deste “mundo livre”. Respiramos o seu ar, estudamos e trabalhamos nas suas instituições, gozamos dos seus privilégios, somos herdeiras das suas histórias. Neste ponto da história em particular, podemos ainda fazer escolhas, tomar posições e projetar a nossa voz, cada vez com maiores riscos, e por vezes com um sentimento de grande impotência, é certo, mas existe outra coisa que possamos fazer? E não está na hora, precisamente, de toda a gente fazer exatamente isso? Não, aqui no “mundo livre”, não vamos libertar a Palestina. A libertação da Palestina está em curso pelas mãos do próprio povo palestino, está em curso há muito tempo, muito antes do que se passa agora, muito muito antes. Gerações e gerações de resistência. Mas existe uma responsabilidade que se coloca aqui, no nosso lado do mundo “livre” – além daquela de apoiar incondicionalmente essa resistência – e que passa por boicotar, condenar, pressionar, rejeitar narrativas e destruir valores que contribuem como obstáculos a essa resistência, a essa libertação.

Imagens: excertos do filme THEY DON’T EXIST, de Mustafa Abu Ali (1974!)

03/12/23

onde o corpo não está

estando noutro lado, desta vez, o corpo não esteve. e no entanto agora eu estou. o que me fez lembrar que é possível estar onde o corpo não está e, por sinal, não estar ainda que o corpo esteja. este pensamento percorreu-me como uma vibração e provocou-me um arrepio, daqueles que acontecem quando nos apercebemos de identificar algo que já sentíamos há muito tempo, como se finalmente reagisse à substância pegajosa que pisei.

estar cá – para voltar ao tema das margens – não é apenas uma questão de perspetiva espacial mas também temporal. enquanto penso no que posso dizer sobre a correlação entre (a) presença e o verbo estar, realizo o estado de dissociação em que me encontro, em permanente falha ou deslize do presente, desencontrada do veículo que me permite não estar onde estou. vulgo fomo, tele-apatia, nadar fora de pé, como se alguma peça na lógica dos signos se tivesse quebrado sem reparo, desfazendo todas as ilusões de inteireza. 

é preciso estar, mas nas linhas traçadas por esta coreografia lacunar e fantasmagórica, falho redondamente nos passos, e continuo a falhar. não é evasão, é sublevação. sou daqui mas oponho-me, recuso-me, e não alinho mais neste teatro. há outro(s) espaço(s) onde estou (à frente, atrás); o corpo está presente sem presenciar, senta-se na plateia sem expectar, e reage a uma galeria de imagens, que alguém fixou, d’espaço-tempo que não habitou, para fazer ilações sobre (a) presença. 

as sombras denunciam a matéria, recortadas no interior do follow-spot, e os movimentos reconstroem-se ao som da voz dos relatos dos verdadeiros espeCtadores: os lenços esvoaçam, as saias abanam – é como se estivesse lá! as artes vivas têm esta particularidade de evidenciar a morte como nenhuma outra arte (morta?), com ou sem queda do pano. artes vivas, isto é, as que exigem cumprir-se pelo corpo vivo de alguém, que é como dizer o corpo-morrente de alguém, entalado entre o berro inaugural e o último suspiro, em que o que desconcerta é o rasto que deixa – deixa de ser – e eu nem vi-vi esta dança. 

pode parecer que me desvio simplesmente pelo prazer de ser esquiva, e nem vou tentar negar o fascínio angustiado que tenho por tudo o que é escorregadio ou fugaz, mas isto não são pensamentos vãos ou vazios. é, sim, uma tentativa de contestar qualquer identidade estática (uma espécie de ressaca derrideana com cheirinho a Phelan?). 

eu estou sem que o meu corpo tenha estado, onde o meu corpo não esteve, e tantas vezes o meu corpo estava sem eu estar: este é o dilema do momento: um fosso. mistério residente, delineado pela alienação e o tem-de-ser forçado de uma normalidade absurda. dentro deste rectângulo mas muito longe. a questão hoje é sobre transbordar do corpo, refutar que o corpo seja aquilo que me torna presente, este presente, estas escolhas. estar lá de alguma forma que não é coincidente com este conjunto de membros e sentidos – um pouco como sonhar. sonhar que o corpo pode estar em vez de si mesmo, ou no lugar de uma ideia..? sonhar que o corpo sonhado pode ser signo e, como tal, sinalizar presença sem estar? lá, onde o meu corpo não esteve, apenas desejou ter estado, como tantas vezes deseja estar onde eu (não) estou. pousando os olhos nas lindas fotografias, vejo arte viva transformada em arte imóvel, mas se os fechar, juro que mexe!

 



Nota: para dissociar o corpo da identidade vergada às fronteiras do estado-nação – as mais rígidas de todas as fronteiras – é preciso caminhar em direção ao público, estender os braços e tropeçar no estrado. é preciso avisar que diferança rima com dança.