03/12/23

onde o corpo não está

estando noutro lado, desta vez, o corpo não esteve. e no entanto agora eu estou. o que me fez lembrar que é possível estar onde o corpo não está e, por sinal, não estar ainda que o corpo esteja. este pensamento percorreu-me como uma vibração e provocou-me um arrepio, daqueles que acontecem quando nos apercebemos de identificar algo que já sentíamos há muito tempo, como se finalmente reagisse à substância pegajosa que pisei.

estar cá – para voltar ao tema das margens – não é apenas uma questão de perspetiva espacial mas também temporal. enquanto penso no que posso dizer sobre a correlação entre (a) presença e o verbo estar, realizo o estado de dissociação em que me encontro, em permanente falha ou deslize do presente, desencontrada do veículo que me permite não estar onde estou. vulgo fomo, tele-apatia, nadar fora de pé, como se alguma peça na lógica dos signos se tivesse quebrado sem reparo, desfazendo todas as ilusões de inteireza. 

é preciso estar, mas nas linhas traçadas por esta coreografia lacunar e fantasmagórica, falho redondamente nos passos, e continuo a falhar. não é evasão, é sublevação. sou daqui mas oponho-me, recuso-me, e não alinho mais neste teatro. há outro(s) espaço(s) onde estou (à frente, atrás); o corpo está presente sem presenciar, senta-se na plateia sem expectar, e reage a uma galeria de imagens, que alguém fixou, d’espaço-tempo que não habitou, para fazer ilações sobre (a) presença. 

as sombras denunciam a matéria, recortadas no interior do follow-spot, e os movimentos reconstroem-se ao som da voz dos relatos dos verdadeiros espeCtadores: os lenços esvoaçam, as saias abanam – é como se estivesse lá! as artes vivas têm esta particularidade de evidenciar a morte como nenhuma outra arte (morta?), com ou sem queda do pano. artes vivas, isto é, as que exigem cumprir-se pelo corpo vivo de alguém, que é como dizer o corpo-morrente de alguém, entalado entre o berro inaugural e o último suspiro, em que o que desconcerta é o rasto que deixa – deixa de ser – e eu nem vi-vi esta dança. 

pode parecer que me desvio simplesmente pelo prazer de ser esquiva, e nem vou tentar negar o fascínio angustiado que tenho por tudo o que é escorregadio ou fugaz, mas isto não são pensamentos vãos ou vazios. é, sim, uma tentativa de contestar qualquer identidade estática (uma espécie de ressaca derrideana com cheirinho a Phelan?). 

eu estou sem que o meu corpo tenha estado, onde o meu corpo não esteve, e tantas vezes o meu corpo estava sem eu estar: este é o dilema do momento: um fosso. mistério residente, delineado pela alienação e o tem-de-ser forçado de uma normalidade absurda. dentro deste rectângulo mas muito longe. a questão hoje é sobre transbordar do corpo, refutar que o corpo seja aquilo que me torna presente, este presente, estas escolhas. estar lá de alguma forma que não é coincidente com este conjunto de membros e sentidos – um pouco como sonhar. sonhar que o corpo pode estar em vez de si mesmo, ou no lugar de uma ideia..? sonhar que o corpo sonhado pode ser signo e, como tal, sinalizar presença sem estar? lá, onde o meu corpo não esteve, apenas desejou ter estado, como tantas vezes deseja estar onde eu (não) estou. pousando os olhos nas lindas fotografias, vejo arte viva transformada em arte imóvel, mas se os fechar, juro que mexe!

 



Nota: para dissociar o corpo da identidade vergada às fronteiras do estado-nação – as mais rígidas de todas as fronteiras – é preciso caminhar em direção ao público, estender os braços e tropeçar no estrado. é preciso avisar que diferança rima com dança.


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