17/11/23

carne e plástico, choque e fio



do lado de cá, como quem embate contra a força de uma evidência, assisti atónita à profundidade da cena, ao que uma dança pode fazer aos olhos: um quarteto de carne resgatado ao desejo pelo gesto criador que nada pode contra a sua inevitabilidade. haveria outra forma de criar senão pelo impulso do que tem de ser? o impacto da coreografia aguarda-se na condensação, numa circunscrição temporal que emociona por si: a da curta e cruel beleza que se dá e logo termina. como a de uma canção… nessa duração da(nça)-se tudo, dando o tempo exato à lágrima para se formar e deslizar. 

esta é uma viagem no tempo; outra alguém já dançou isto antes, simulando a vertigem do cimo de um trapézio imaginário, antes do mergulho para os seis braços, os três abraços, uma liberdade de outro tipo, de outro género, com outras sombras, movida por uma vontade cáustica de dançar o que não se via dançar — e sobrevive ainda, no corpo assombrado de outra bailarina.

conjunto de músculos executantes, no corpo dela cabe uma pessoa inteira, e toda a violência que é ser pessoa num corpo; com o corpo ser pessoa. toda a violência que é ser mulher num corpo, ser pessoa num corpo de mulher. de colo em colo, hirta ou maleável, frenética ou passiva, intensidade ao rubro bate fundo, choca contra, revela-se na contradição de querer e não querer ser, querer e não querer decidir / precisar / controlar / seduzir / permitir / negar / resistir / ceder / atrair / enfrentar / desistir / escolher/… 

é no corpo que a sinto, a cada gesto, a cada choque, identificação-diferenciação, conflito interno – eu sei sobre o que isto é, eu sei e é isso que bate, foi isso que bateu. mas no fim, quero mais (e mais e mais, Nina Hagen em repeat), é esse o desejo suspenso pelo fio do trapézio imaginário que antecede qualquer embate (ou desvio).


logo logo vem outro corpo, desenhar com fio real (dental) um outro caminho. fala-nos do lado de lá, vestida apenas com uma frágil armadura de plástico e fita cola, cuidadosamente comprimida contra a pele nua. uma história sobre ida e retorno, rios e mares que ligam e separam margens, pontes que exigem e permitem travessias. ilustrada pela composição em tempo real de uma maquete com os mesmos objetos que serviam de vestimenta – pensos higiénicos, lenços de papel, palitos, pasta de dentes – a história desenrola-se como um novelo e é familiar. enquanto descrevo, como ela descreve, uma peça sobre descrições sobre coisas, visita às memórias de alguém, surgem partes soltas de uma memória conjunta de todas aquelas que conhecem as divisões do mundo, das cidades, das pessoas. aquelas que sabem que o lado de cá não é igual ao de lá, que tudo muda mal se passa a linha, a fronteira, o rio. o que falta pensar a fundo é que (poder) ir e vir não é apenas uma prova de liberdade, curiosidade ou coragem... para onde vai quem é expulso de onde pertence, para onde volta?


Imagens:
(1) Lágrima, de Olga Roriz
(2) Visita Guiada, de Cláudia Dias

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