É curioso constatar que, a par de uma história de opressão sistémica, que confina a voz feminina ao silêncio e castiga as mulheres que ousam quebrá-lo, encontramos também uma série de mitos em torno desse prazer causado pela voz feminina, sedutora, carnal – como no caso das Sereias, por exemplo, ou mesmo das Musas. Em ambos os casos, de forma explícita ou implícita, entende-se a voz feminina como algo perigoso ou irresistível, que precisa de ser controlado ou mesmo evitado.
Numa das suas instalações-performance intitulada Illusions Vol. I – Narciso e Echo (2017), a artista Grada Kilomba revisita o mito de Ovídeo para explorar a temática das políticas de invisibilidade e silenciamento que constituem o centro da sua obra, recriando Narciso como a metáfora de uma sociedade que ainda não resolveu o seu passado colonial e que continua a olhar para si própria como único objecto de amor. Porém, o foco é colocado na figura de Echo, ninfa amaldiçoada por Hera devido à sua eloquência, condenada a nunca mais falar a não ser para repetir as palavras que ouve, para sempre. Apaixonando-se perdidamente por Narciso, é por ele rejeitada, acabando por se transformar em rocha e numa voz sem corpo, o próprio eco das montanhas. Grada Kilomba introduz assim um questionamento: como quebrar o ciclo repetitivo e a reprodução constante dos moldes coloniais e patriarcais que relegam a voz feminina – e, neste caso, fazendo também um paralelo entre Echo e a figura do sujeito colonizado – ao trágico destino da impossibilidade de falar por si própria?
Com este trabalho, a artista apresenta-nos uma possível interrupção desse mesmo ciclo e uma possível resolução das aporias que o constituem. Interpelando Gayatri Spivak, Kilomba questiona a prescrição de silêncio e marginalidade imposta à subalterna, abrindo um espaço onde os mitos são desconstruídos e questionados e onde a sua voz é efectivamente ouvida. Para além de uma componente corporal, coreografada, protagonizada por corpos negros e não brancos, que encenam gestualmente a acção, esta é narrada pela voz da própria artista (por vezes presente ou então através de uma gravação). Esta voz, simultaneamente suave e profunda, inconfundível, não só recupera a linguagem que lhe foi secularmente negada, como constitui o elemento fulcral da peça, o fio condutor, não só da narrativa como da experiência do espectador / ouvinte – o logos recupera a voz! É certo que a voz metafórica também é implicada, visto que, enquanto mulher negra, a artista inverte o lugar que lhe é reservado: a voz marginal e periférica torna-se aqui central e a linguagem é por ela reapropriada. Assumidamente inspiradas na tradição oral africana do griot, as performances de Grada Kilomba superam a dinâmica dualista entre universal e particular e os lugares fixos do centro e da periferia, pressionando o ar com a sua voz singular, fazendo desta muito mais do que um veículo de discurso – uma voz que é portadora de si mesma, enquanto manifestação sonora de auto-afirmação.
Numa das suas palestras, Adriana Cavarero, que também aborda o mito de Echo no seu livro dedicado à voz (For More Than One Voice, 2005), oferece-nos uma outra possibilidade de interpretação e desconstrução do mito, revelando a potência da ninfa precisamente através do exercício vocal da repetição que esta põe em prática. Desta perspectiva, a própria repetição já não simboliza um lugar subalterno no ciclo de opressão mas antes revela a reciprocidade da comunicação acústica inerente à voz, que desestabiliza o cânone através da sua “des- semantização”. Diz:
“A vingança de Echo é subtil (...) ela des-semantiza a voz através da repetição (...) desvinculando a palavra do seu significado e transformando-a em puro som (...) a ninfa Echo representa esta voz que interrompe e fragmenta a palavra e que, através da repetição da palavra fragmentada, cancela a ordem semântica hegemónica (...) o que realmente se comunica é a própria voz, na sua unidade e variabilidade.”
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