30/10/23

dançar que se pensa


há qualquer coisa que está gasta (mas não é o corpo). há qualquer coisa que cansa (mas não são as palavras, nem os movimentos, nem o arco-estímulo entre o dito e o movido). a ligação quebra e refaz-se, do olho ao pé. mas as possibilidades são finitas, contingentes e materiais. o corpo tomba, ainda que seja forçado. há gravidade mais forte do que a vontade? ela está sempre no limbo (vontade de quê, de quem?), mas a divisão foi inventada antes de se tornar muro. há qualquer coisa gasta (e é essa a coisa!). o improviso também cristaliza, petrifica, solidifica a (re)a(tiva)ção (atenção que há 6 palavras dentro desta), é a dança da morte. 

foi preciso passar pela solidificação de um léxico para a ansiada soberania do corpo, de acreditar que ele podia tudo, antes de chegar “aqui”. antes ele não podia nada (?). de vez em quando, o corpo faz um gesto que é clarão. mas o que faz de certo gesto clarão, pontada, sobressalto? fui eu? não era eu a dançar mas fui eu que vi o clarão, senti a pontada e o sobressalto. mas o que é “fazer um gesto”? as perguntas desdobram-se, o corpo expande, continua a dançar que pensa, e eu aqui. também me mexo, se me lembrar. o som arrepiante dos pés a deslizar no linóleo já não tem por onde escapar, nem a tosse do senhor ao meu lado.

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lembro-me de fazer o desenho de um corpo e de inventar uma “anatomia de camadas”: o dentro, o mesmo-dentro, o dentro de tudo… mas nas camadas “de fora”, começavam os problemas. eram precisas testemunhas, não há corpo que se sustente sem elas.

o corpo foi tão maltratado, ainda é. o corpo guarda tudo. o corpo não está gasto, mas a palavra corpo já cansa. não é a palavra corpo, não é ela, é o muro que ela encerra e não pode, não tem como destruir. nem o corpo poderia — vale a pena tentar? o corpo é tudo menos muro, digam o que disserem os defensores da alma, do espírito, e de todas as coisas que o corpo supostamente aprisiona (vão dizer isso aos fantasmas…). 

o corpo é altamente penetrável, cheio de botões e buracos, cavernoso e acústico. as coisas entram-lhe por ele adentro, despejam-se. mas o que mais fascina é o impacto que tem nos outros corpos. nessa troca, o corpo encontra-se, reconhece-se, é outro como qualquer corpo, condenação-revelação que talvez não tenha como contornar. no final da dança, quem dançou?, pensei eu.


Na imagem: Paulina Santos dança Talvez ela pudesse dançar primeiro e pensar depois (1991), de Vera Mantero, na Gulbenkian.


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