06/11/23

ocupar (um) espaço



o presente é um feixe de muitos raios, uma espada de muitos bicos, uma voz cheia de harmónicos, embora nem todos sejam audíveis ao ouvido que, nesse presente, filtra o som para se situar.

mas o presente é generoso, abraça tudo no movimento que ele é. ultimamente, tem sido a história o recurso (e refúgio) mais valioso para ler o presente. mas a história, mais do que em livros, e para além de ferramenta de leitura, é movimento também. e o presente, generoso como ele é, ilumina a história a cada agora, para que ela mexa.

onde fica o porvir na equação dos tempos? esse holofote fabuloso sobre a maquete da cidade, sempre aceso. se o presente é encruzilhada, o futuro é curva, o passado é tronco atravessado na estrada. e para que haja história, é preciso quem a conte.

esta história é sobre ocupar – que é como dizer: esta história é sobre o corpo e a sua relação com o espaço. (não era de tempo que estávamos a falar? a história do corpo é sempre uma história de trauma – o chamado passado que não passa. voltamos sempre, sempre, aos fantasmas, à luta do luto que é ser vivo, à exigência poliédrica do presente em curso, etc.).

ocupar é tomar o espaço. sabemos esta história porque ela é nossa. ocupando se domou e dominou, se explorou e expropriou. ocupando se continua a expropriar. mas assim como há ocupante e ocupado, há ocupar e ocupar. ocupando também se resistiu e vai resistindo, é esse o movimento da história dos movimentos. há ocupar o espaço do outro e há ocupar o espaço que ao outro é negado. contra a ocupação, ocupamos as ruas e os cânticos ecoam. reivindica-se o espaço que não acolhe, deitamos os nomes dos mártires no chão das insígnias coloniais. abrimos caminho, vedamos entradas. 

quando ocupar é uma ação necessária contra a negação de espaço, liberdade e agência, ocupemos.

do outro lado da cidade, faz-se história também. corpos (nus) ocupam o espaço de passagem transformado em palco, iluminando o que a dita civilização queria ocultar – a prova viva do que queria matar. o corpo-”outro” (mitificado), que desafia o modelo-norma, desenhado à custa da exclusão multiplicada e violentamente institucionalizada. num dos lugares mais institucionais da cidade, estes corpos ocupam o espaço e dançam nele, lambuzam-se com a generosidade do presente, fazendo da nudez-transgressora uma transgressão libertadora, das folhas douradas uma valiosa ampulheta.

há que constatar que a mesma palavra não tem o mesmo valor em cada boca, a mesma ação muda consoante o corpo que a provoca, a saliva muda de sabor a cada língua, e essa é a diferença que conta. o presente é a melhor imagem da interseccionalidade. há ocupar e ocupar. uma história sobre o corpo e a sua relação com o espaço, o prazer, o frio e o calor, a dor, a terra e os recursos e todas aquelas coisas que, em nome da missão colonizadora, se ergueram entre ele e esses mesmos recursos. um corpo de gente, que se transforma em povo inteiro, em sexo, em cor.


Imagens:
(1) Manifestação pró-Palestina em Belém
(2) Gaya de Medeiros em A boca do Atlas, na Gulbenkian

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